CEIÇA
Cinquenta e sete anos de idade. Passa o dia inteiro sentada no sofá sem desgrudar os olhos dos noticiários na televisão. Está aterrorizada por causa de um temível vírus que está assolando o mundo e se espalha com uma incrível rapidez, ceifando milhares de vidas. Intrigada com o fato inusitado, fica revoltada e brada:
– “Népussivel” uma merda dessa! Antigamente a minha mãe dizia que Deus ia acabar o mundo antes do ano dois mil e eu vi que Ele não conseguiu.
Chateada com a nova ameaça fala irritada:
– Mas agora aparece essas “miséra”, saídas dos quintos dos infernos, querendo exterminar com a humanidade. É muita maldade a ganância deles em querer vender as vacinas antivirais, máscaras cirúrgicas, respiradouros e outras porcarias.
De repente uma preocupação vem-lhe à mente e ela lamenta:
– Infelizmente Alcebíades precisa ficar viajando porque o trabalho dele tem que ser presencial. Por isso não pode “vim” pra ficar em casa trabalhando no tal de “rôme-ófi”. Assim sendo, o coitado fica exposto a esse vírus exterminador.
Logo depois fica agoniada e diz:
– O meu único “pobrema” é o Juninho que não “mim” obedece de maneira nenhuma; o menino só quer viver nas farras e não tem preocupação em se proteger.
Chateada, lamenta:
– E não adianta eu dizer a ele pra evitar locais com aglomeração de pessoas que o sujeito faz o contrário só pra “mim” pirraçar.
JUNHÃO
Trinta e sete anos de idade. Depois do almoço vai para o quarto fazer uma sesta. Mais tarde, ao acordar, fica assustado porque a mãe não está em casa. Passa um tempo matutando aonde ela poderia ter ido, já que a mesma vive assombrada sem querer sair de casa por causa da histeria coletiva acerca da gripe virótica. Enquanto aguarda a mãe chegar, aproveita para cochilar mais um pouco no sofá.
CEIÇA
Às dezessete horas, chega do supermercado carregada de compras. Entra no apartamento resmungando porque tem que fazer tudo sozinha, pois o filho não lhe ajuda em nada. A cabeça está enorme por causa dos bóbis presos aos cabelos e encobertos por um lenço de seda barata. Também usa um óculos escuro com uma grande armação amarela, bastante espalhafatosa. Como se essa excentricidade não bastasse, está usando luvas descartáveis e duas máscaras cirúrgicas com medo de ser contaminada pelo vírus. Para completar o exotismo da sua figura, por temer o vírus letal, caminha com um frasco de spray numa das mãos que a todo momento esparge álcool setenta no ar a fim de purificar o ambiente por onde vai passar.
Prevendo um longo período da pandemia, comprou víveres suficientes para passar seis meses confinada em casa e, principalmente, farto material de limpeza, equipamentos de proteção individual e muitos frascos de álcool em gel e de setenta graus. Ao ver o filho madornando, fica indignada e grita:
– Levanta daí, inútil!… E vá logo na portaria buscar o restante das compras!
JUNHÃO
Acorda assustado e arregala os olhos demonstrando medo ao ver aquele ser grotesco carregado de volumosos sacos plásticos. Atordoado por ter sido acordado subitamente, levanta-se rápido e grita:
– Que diabo é isso?!!!… Sai pra lá assombração!!!
Passado o susto, logo depois ele percebe que a criatura espalhafatosa é a própria mãe, por causa da zoada que ela promoveu. Demonstrando estar contrariado, reclama:
– Poxa!… Você não pode ver ninguém em paz. Isso é jeito de acordar o filho? Por que não trouxe todas as sacolas de uma vez?
Ainda não satisfeito, continua:
– Primeiro manda eu ficar em casa; agora quer que vá na rua só porque é conveniente pra você.
A seguir critica:
– Como se não bastasse a zoada que fez para me acordar, ainda está fantasiada como se fosse para uma festa de halloween, só para me espantar.
E conclui enfezado:
– Essa velha está ficando cada vez mais pirada!…
CEIÇA
Fica em tempo de estourar de raiva ao ver a preguiça do filho. Mas, apesar da indolência, ele desce para buscar as compras, mesmo estando irritado por ter o seu cochilo interrompido. Ao vê-lo indo cumprir a sua ordem ela vai arrumar as compras que trouxera na despensa. Complacente, fala risonha:
– Esse menino não é ruim de tudo; é só um pouco descansado. Às vezes eu me zango com ele à toa, coitado…
Sentindo-se aliviada por fazer uma mea-culpa, diz contente:
– Ainda bem que graças a Deus, ele está se esquivando de sair de casa com medo de ficar gripado.
De repente toma um susto e exclama:
– Mas que sujeito “inresponsável”! Foi na portaria do prédio e não colocou a máscara e nem as luvas para se proteger da “miséra” do vírus!
JUNHÃO
Pouco tempo depois ele retorna com as compras. Está muito mal-humorado por causa do trabalho que teve. Ao ver a mãe descarrega o seu rancor:
– Os seus pacotes já estão aqui! Você ficou maluca?!… Pra quê essa montoeira de compras? Aliás eu já sei: é só para me transformar em seu burro de carga.
Está zangado e reclama:
– Essa doideira sua é devido ao terrorismo emocional que os repórteres da televisão estão fazendo ao noticiarem o tempo inteiro sobre as internações e mortes causadas por esse vírus miserável.
Muito revoltado, afirma:
– Inventaram essa doença desgraçada pra tirar o meu sossego. E o pior é que agora o governo ameaça que vai mandar fechar todos os bares e as boates. Estão querendo acabar com a única diversão que tenho.
A seguir lamenta:
– Não sei o que vai ser da minha vida sem poder frequentar as noitadas de agora em diante…
CEIÇA
Ao ouvir as reclamações do filho fica ruborizada, a cabeça começa a fumaçar e ela explode de raiva quase gritando:
– Você é mesmo um desajuizado; um cabeça de vento! Só pensa em fazer farra! O tempo está passando e até hoje eu nunca ouvi você falar em trabalhar. A sua vida é querer curtir!
A seguir diz com lamúria:
– As compras eu fiz pra gente, e não pra mim sozinha. Aliás comprei mais pra você que come igual a um bicho aqui em casa. Basta qualquer pessoa olhar pra ver o tamanho grandão do “bitelo” que eu crio. Ouviu, mocinho?!
JUNHÃO
Resolve pedir desculpas à moda dele. Aparentando constrangimento se dirige à mãe falando:
– Foi mal, coroa!… Pelo menos você viu que eu trabalho. Pensa que foi mole eu trazer esse montão de compras lá da portaria?
Logo depois argumenta:
– Estou estressado porque acho um martírio cumprir essa prisão domiciliar que o governo diz que é isolamento social. Daqui a uns dias eles vão querer colocar tornozeleira eletrônica em todo mundo.
E lamenta tristonho:
– Já pensou um sujeito ativo igual a mim ficar preso em casa sem poder ir farrear?
CEIÇA
Está revoltada com o clamor do filho. De repente ela se lembra de algo muito importante e dá um grito pavoroso. A seguir ordena:
– Corre ligeiro pra tirar essa roupa entupida de vírus e tome um banho da cabeça aos pés. E esfregue bem o couro com bucha vegetal. Depois passe bastante álcool gel nas mãos e nos punhos pra descontaminar!
Apesar de estar agoniada com o descaso do filho, aproveita para dizer que irá tomar outra providência:
– Enquanto isso eu vou pulverizar com álcool setenta todos os pacotes, antes de retirar os produtos das compras.
JUNHÃO
Não entende a histeria da mãe e tenta argumentar:
– Peraí, velha! Você está exagerando!… Eu só desci até a portaria e voltei. Não estou contaminado com nada. Que paranóia é essa?
CEIÇA
Está desesperada porque não quer ser contaminada pelo vírus mortal. Insiste para que o filho vá para o banheiro fazer a assepsia. Percebendo que ele está resistindo, ameaça:
– Júnior, Júnior…, se você não for tomar banho pra se livrar desses pestes, eu juro que vou cortar a sua mesada, ouviu?
JUNHÃO
Quando ouve a mãe ameaçar dizendo que não irá mais dar dinheiro para as suas farras, fica temeroso e decide ir para o banheiro espumando de raiva. Durante o pequeno trajeto, vai reclamando:
– Essa criatura antipática tem mania de limpeza; passa o dia todo limpando o apartamento. Já não aguento mais tanto asseio. E agora pirou de vez por causa desse tal de novo coronavírus.
Inconformado, afirma:
– Quando terminar o banho eu vou lhe dar um esporro. Ela que me aguarde…
CEIÇA
Está satisfeita porque as coisas estão andando nos trilhos, isto é, de acordo com a sua vontade. Cantarola enquanto arruma as compras no armário da despensa. Pouco depois para de cantar e fala baixinho para si:
– Quando o pobre do Alcebíades telefonar hoje à noite, eu vou mandar para ele ficar confinado na pousada e que use luvas, máscaras e álcool gel.
Visando tapear o marido, vai informa-lo como a vida está transcorrendo em casa:
– Vou tranquilizar ele dizendo que apesar dos transtornos causados por esse vírus “disgraçado”, estamos bem. E que o nosso filhinho é muito obediente; um amor de pessoa.
JUNHÃO
Termina o banho e, ao passar pela mãe, reclama com a voz alterada:
– Está vendo aí, que você tem dois pesos e duas medidas?!… Antes de me mandar tomar o banho, você deveria ter tomado o seu primeiro, quando chegou da rua!
E para amedronta-la, diz simulando estar com medo:
– Agora o apartamento deve estar cheio dos vírus pestilentos por sua causa.
CEIÇA
Ao ouvi-lo arregala os olhos, mas nada diz porque sabe que o filho está certo. Emudecida, continua arrumando as compras. Os mantimentos para guardar são muitos e quando termina já é noite. Então vai para o banheiro tomar o seu banho e fala:
– Que milagre o Júnior não veio me dizer mais dichote… Por que será que aquele “mala sem alça” está quieto no quarto? Com certeza ele resolveu se confinar e deve estar dormindo com medo do vírus.
A seguir surge uma dúvida em sua mente:
– Ou será que esse peste está armando alguma treita?
JUNHÃO
Aproveita que a mãe está no banho e se arruma com calma. Sabe que a neurose dela fará com que fique por várias horas lavando o corpo para limpá-lo do vírus. Após se perfumar ele sai de fininho e vai para a rua. Como é indisciplinado e não mede as consequências, desobedece a orientação da mãe e dos incessantes apelos da mídia para que as pessoas fiquem em isolamento social. Sem se importar com as consequências, vai farrear durante a noite inteira.
CEIÇA
Depois do banho vai para a cozinha preparar o jantar fazendo um mínimo de barulho para não acordar o filho. Mas a língua coça e ela diz:
– Aquele sujeito deve estar no quinto sono. É um pirão perdido; só serve pra comer e dormir. Não sei a quem ele puxou com essa moleza mórbida.
Quando termina de aprontar a janta, arruma a mesa e vai chamar o filho. Enquanto caminha em direção ao quarto dele, fala:
– A tv diz que para combater esse vírus a pessoa ter que estar bem alimentada. Eu não quero que meu filhinho se contamine; ele é tão jovem pra morrer…
Volta frustrada após perceber que o filho já havia saído de casa, então fica tristonha e vai jantar sozinha.
JUNHÃO
Chega da farra de madrugada. Curtiu a noite com a sua namorada Janete em bares e boates. Levanta-se perto do meio-dia e, ao ver a mãe, começa a dar a sua explicação:
– Você está vendo que não me aconteceu nada! Os bares estavam lotados e era só alegria. Eu fui só para provar que esse negócio de vírus é pura invenção. Quem não pode sair na rua é você que é uma idosa decrépita.
CEIÇA
Acorda assustada com urros vindos do quarto do filho. Preocupada, corre enlouquecida para socorrê-lo gritando:
– Ô Jesus, acode o meu filhinho!… O coitado deve estar sofrendo com um pesadelo terrível!
JUNHÃO
Quando ela abre a porta ele grita:
– Mainha, não entre!… Fique aí na porta porque eu acho que contraí o vírus covid-19. Estou morrendo de dor de cabeça, parecendo que vai estourar. A minha garganta está ressecada, estou com febre, tossindo seco, coriza e com falta de ar.
E finaliza de modo dramático:
– Eu não quero morrer mainha! Salve o seu filhinho!
Desesperado, desanda a chorar alto com medo da morte iminente.
CEIÇA
Aflita, fica desesperada com as mãos na cabeça sem saber o que fazer para acudir o filho. Mesmo assim, aproveita a ocasião para dar uma reprimenda nele:
– Eu falei pra você não sair, mas parece que tem a cabeça de bagre, olha aí o resultado?! Agora a solução é chamar o SAMU. Mas fique calmo porque Jesus há de lhe curar dessa doença maligna!
JUNHÃO
Tem um sobressalto e implora entre tosses intermitentes:
– Não quero ser internado, porque eu não quero entrar para a estatística dos mortos. Eles estão ganhando muito dinheiro com os finados e eu sou novinho pra ir embora antes do tempo.
E continua apavorado dizendo:
– Mesmo que sobreviva, a televisão vai mostrar a minha foto dizendo que sou contaminado e isso vai afastar as minhas amizades por medo de que eu transmita a doença.
Sentindo cansaço, para por alguns instantes enquanto recupera a respiração. Depois continua:
– Mainha, estou prestes a morrer! Pelo amor de Deus, chame com urgência o doutor Ednaldo para me receitar. Ele é o pediatra que me consultava quando eu era criança.
Aproveitando a fragilidade da mãe e cheio de esperança, faz outro pedido:
– E também vá ligeiro buscar a Janete lá no Vale das Pedrinhas, porque a coitada também está contaminada. Eu sei que a senhora vai cuidar muito bem da gente. Não se esqueça de trazer ela, mainha!
CEIÇA
Muda de humor na hora e responde com rispidez:
– É cada coisa que eu vejo! Você já esqueceu a idade que tem? O seu pediatra já morreu faz tempo.
Enraivada com o pedido descabido, fala cuspindo fogo:
– Não vou buscar o diacho da sua quenga de maneira nenhuma! Só se eu beber baba de cachorro doido pra aceitar cuidar de maloqueira dentro da minha casa!
Revoltada, continua a falar:
– Você é quem vai lá pra cafua dessa fulana pra se tratarem juntos. Afinal a sua doença foi por causa da sua cegueira correndo atrás dela.
Mas, temendo que o filho morra por falta de cuidados médicos, ordena:
– Agora nós dois vamos rápidos pro hospital; lá eles vão fazer uns “inxames” em você pra descobrir que diabo de doença é essa.
Esperançosa diz:
– Tomara que não seja a causada por essa “miséra” da pandemia.
JUNHÃO
Faz finca-pé para não ir, porque quer curar a doença em casa. Apesar da recusa, a mãe o leva a pulso para cuidar da saúde.
RESULTADO DOS EXAMES
CEIÇA
Está aliviada e muito feliz porque foi constatado que o filho está apenas com uma forte gripe causada pelo vírus influenza, portanto não mortal. Delirando de alegria, ajoelha-se no chão e grita esfuziante:
– Valeu, Jesus!!!… Muito obrigado, meu Deus!!!… Eu tinha fé que o Senhor ia atender as minhas orações e salvar o meu filhinho da morte!
JUNHÃO
Após ser medicado, fica acamado. Na realidade ele exagerou os sintomas da gripe para ser mimado pela mãe. Contudo, apesar da assistência recebida, ele está contrariado com Ceiça e resmunga raivoso:
– Que velha enganjenta da zorra!… Eu queria que ela fosse buscar a Janete para ficar me fazendo companhia, mas essa sujeita é gente ruim e não trouxe a minha gata.
Depois ameaça:
– Essa peça peba vai sofrer na minha unha quando eu sarar! Aí ela vai ver quem é o ruim daqui.
Autor: Joswilton Lima


Joswilton Lima é natural de Ilhéus-Ba, mas é domiciliado há mais de vinte anos em Morro do Chapéu. Tem formação em Ciências Econômicas, mas sempre foi voltado para as artes desde a infância quando começou a pintar as primeiras telas e a fazer os seus primeiros escritos. Como artista plástico participou de salões onde foi premiado com medalhas de ouro e também de inúmeras exposições coletivas nos estados da Bahia, Sergipe e Pernambuco. Possui obras que fazem parte do acervo de colecionadores particulares e entidades tanto no Brasil, quanto em países do exterior, a exemplo dos E.U.A, Portugal, Espanha, França, Itália e Alemanha. Possui o site www.joswiltonlima.com onde tem uma mostra de algumas de suas pinturas em diferentes técnicas e estilos, sendo visualizado por inúmeros países.
Em determinada época lecionou pintura em seu atelier no bairro de Santo Antonio Além do Carmo, em Salvador, e foi membro de comissões julgadoras em concursos de pintura. Nesse período exerceu a função de Diretor na Associação dos Artistas Populares do Centro Histórico do Pelourinho (primitivistas e naif’s), em Salvador.
Como escritor também foi premiado em diversos concursos de contos tendo lançado um e-book com o título “Enigmas da Escuridão”, com abordagem espiritualista, tendo obtido a nota máxima de 5 estrelas de leitores do site www.amazon.com.br Outros contos e romances estão sendo escritos.
Concomitante às atividades artísticas sempre exerceu funções laboriosas em diversos setores produtivos, tendo se aposentado recentemente na Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia, onde trabalhou por muitos anos na Fiscalização.