‘VIXE!… E AGORA?!’ Confira em mais um dos EPISÓDIOS DO JUNHÃO

MÃE

Setenta e três anos. Às dezessete horas chega do supermercado resmungando porque está carregada de compras. A cabeça está enorme por causa dos bóbis presos aos cabelos e encobertos por um lenço de seda barata. Também usa óculos escuro bastante espalhafatoso. Como se isso não bastasse, usa luvas descartáveis e máscara cirúrgica com medo de ser contaminada pelo vírus. Ela comprou víveres para passar três meses confinada em casa e, principalmente, materiais de limpeza, luvas descartáveis, máscaras cirúrgicas e muitos frascos de álcool em gel. Quando vê o filho madornando no sofá ela fica indignada e grita:

– Levanta daí, inútil! E vá logo na portaria buscar o restante das compras!

JUNHÃO

Cinquenta e três anos. Acorda assustado arregalando os olhos para aquela figura extraterrestre carregada de volumosos sacos plásticos. Ainda atordoado levanta-se rapidamente e grita:

– Que diabo é isso!!! Sai pra lá assombração!

Mas logo depois ele percebe que a criatura espantosa é a própria mãe por causa da zoada que ela promoveu. Demonstrando estar contrariado, reclama:

– Poxa! Você não pode ver ninguém em paz. Por que não trouxe tudo de uma vez? Primeiro diz pra eu ficar em casa; agora quer que eu vá para rua por causa da sua conveniência.

E a seguir comenta:

– Como se não bastasse o barulho que fez para me acordar ainda se fantasia como se fosse para uma festa de halloween só para me espantar. Essa velha é pirada!…

MÃE

Está em tempo de estourar de raiva ao ver a preguiça do filho. Mas, apesar de indolente ele desce para buscar as compras irritado por ter o seu cochilo interrompido. Ao vê-lo indo cumprir a sua ordem ela vai arrumar as compras que trouxera na despensa. Complacente, fala risonha:

– Esse menino não é ruim de tudo; é só um pouco descansado.

JUNHÃO

Pouco tempo depois ele retorna com as compras. Está muito mal-humorado. Ao ver a mãe descarrega o seu rancor:

– “Taí” as suas compras! Você ficou maluca?! Pra quê essa montoeira de compras? Aliás eu já sei: é para me transformar em seu burro de carga.

E completa:

– Essa doideira sua deve ser por causa da televisão que a toda hora noticia a vinda desse vírus miserável pra tirar o meu sossego. Agora estão falando que vão fechar os bares e as boates. Os china estão querendo acabar com a minha única diversão. Não sei o que vai ser da minha vida de agora em diante.

MÃE

Ao ouvir as reclamações do filho ela fica ruborizada, a cabeça começa a fumaçar e ela explode de raiva quase gritando:

– Você é mesmo um “inresponsável”, um cabeça de vento! Só pensa em fazer farra! O tempo está passando e até hoje eu nunca ouvi você falando em trabalhar. Só fala em curtir!

A seguir diz com lamúria:

– As compras eu fiz pra gente e não pra mim sozinha. Aliás comprei mais pra você que é quem come muito aqui em casa. Basta qualquer pessoa olhar pra ver o tamanho grandão do “bitelo” que eu crio. Ouviu, mocinho?

FILHO

Por um momento ele tem um pouco de consciência e resolve pedir desculpas à moda dele. Aparentando constrangimento – só aparentando – ele se dirige à mãe falando:

– Foi mal, coroa! Pelo menos você viu que ao invés de ficar falando, eu trabalho. Pensa que foi mole eu carregar esse monte de compras lá da portaria?

Logo ele argumenta:

– Além do mais eu estou estressado por causa dessa prisão domiciliar que o governo diz que é isolamento social. Daqui a uns dias eles vão querer colocar tornozeleira eletrônica em todo mundo. Já pensou um sujeito ativo igual a mim ficar preso em casa sem farrear?

MÃE

Está revoltada com o clamor do filho. De repente ela se lembra de algo muito importante e dá um grito pavoroso. A seguir ordena:

– Corre ligeiro pra tirar essa roupa contaminada e tome um banho da cabeça aos pés. Depois passe bastante álcool gel nas mãos e nos punhos para descontaminar!

JUNHÃO

Não entende a histeria da mãe e tenta argumentar:

– Peraí, velha! Eu só desci até a portaria e voltei. Não estou contaminado com nada. Que paranoia é essa?

MÃE

Está desesperada porque não quer ser contaminada pelo vírus gripal. Insiste para que o filho vá para o banheiro fazer a assepsia. Percebendo que ele está resistindo, ameaça:

– Júnior, se você não for para o banheiro se livrar desses vírus, eu juro por Nossa Senhora da Luz que vou cortar a sua mesada, ouviu?

JUNHÃO

Quando ouviu que ela iria cortar o dinheiro das suas farras ele fica temeroso e decide ir para o banheiro espumando de raiva. Durante o pequeno trajeto, vai reclamando:

– Essa criatura vive com mania de limpeza; passa o dia todo limpando o apartamento. Já não aguento mais tanta limpeza. E agora pirou de vez com esse tal de novo coronavírus. Quando terminar o banho eu vou lhe dar um esporro. Ela que me aguarde…

MÃE

Está satisfeita porque as coisas estão andando nos trilhos. Cantarola enquanto arruma as compras no armário. Pouco depois para de cantar e fala baixinho para si:

– O pobre do Alcebíades está na cidade de Paripiranga. Quando ele ligar hoje à noite eu vou recomendar para que ele fique confinado na pousada e que use luvas, máscaras e álcool gel. Também vou dizer a ele que o nosso filhinho está muito obediente; um amor de pessoa.

JUNHÃO

Termina o banho e, ao passar pela mãe, esculacha a coitada:

– Tá vendo aí que você tem dois pesos e duas medidas? Antes de me mandar tomar o banho, você deveria ter tomado o seu primeiro. Agora o apartamento deve estar cheio de vírus.

MÃE

Ao ouvi-lo arregala os olhos, mas nada diz porque sabe que o filho está certo. Emudecida, continua arrumando as compras. Os mantimentos para guardar são muitos e quando termina já é noite. Então vai para o banheiro tomar o seu banho e fala:

– Que milagre o Júnior não veio me dizer mais dichote. Por que será que aquele “mala sem alça” está quieto no quarto? Com certeza ele resolveu se confinar com medo do vírus.

JUNHÃO

Sem que ela percebesse, após o banho ele se arrumou e saiu sorrateiro para a rua, desobedecendo aos incessantes apelos da mídia para que as pessoas ficassem em isolamento social. Ele, indisciplinado, foi farrear durante a noite.

MÃE

Depois do banho vai para a cozinha preparar o jantar fazendo o mínimo de barulho possível para não acordar o filho. Mas a língua coça e ela diz:

– Aquele infame deve estar no quinto sono. É um pirão perdido; só serve pra comer e dormir.

Quando termina de fazer a janta, arruma a mesa e vai chamar o filho. Enquanto caminha em direção ao quarto dele, fala:

– A tv diz que para combater o vírus a pessoa ter que estar bem alimentada. Eu não quero que meu filhinho se contamine, ele é tão jovem…

 

 

JUNHÃO

Chega da farra de madrugada. Curtiu a noite com a sua namorada Janete em bares e boates. Levanta-se perto do meio-dia e, ao ver a mãe começa a dar a sua explicação:

– Você está vendo que não me aconteceu nada! Os bares estavam lotados e era só alegria. Eu fui só pra ver se acabo com essa sua neurose. Quem não pode sair é você que é idosa.

MÃE

Três dias depois da farra do filho. Ela acorda com urros vindos do quarto dele. Preocupada corre para socorrê-lo.

JUNHÃO

Quando ela abre a porta ele fala de modo gentil:

– Mainha, não entre! Fale daí da porta porque eu acho que contraí o vírus Covid-19. Estou morrendo de dor de cabeça parecendo que vai estourar. A minha garganta está ressecada, estou com febre, tossindo seco, coriza e com falta de ar. Eu não quero morrer minha mãe!

E desanda a chorar alto.

MÃE

Entra em desespero. Fica feito louca sem saber o que fazer. Mesmo assim dá uma reprimenda nele:

– Eu falei pra você não sair, mas parece que tem a cabeça de bagre, olha aí o resultado. Agora a solução é chamar o SAMU. Mas fique calmo porque Jesus há de lhe curar!

JUNHÃO

Tem um sobressalto e implora entre tosses intermitentes:

– O SAMU não, porque eu não quero virar estatística. A primeira coisa que o noticiário vai dizer é que sou mais um contaminado e isso vai acabar com as minhas amizades.

Para por alguns instantes e depois continua:

– Por isso eu lhe peço mainha: chame aquele pediatra que me consultava quando eu era criança. E também vá buscar a Janete lá no Vale das Pedrinhas porque a coitada também está contaminada. Eu sei que a senhora vai cuidar bem da gente.

MÃE

Muda de humor na hora e responde com rispidez:

– É cada uma coisa que eu vejo! Você já esqueceu a idade que tem? O seu pediatra já morreu faz tempo. E quanto à sua quenga, você é quem vai lá pra casa dela para se tratarem juntos. Afinal foi por causa da sua cegueira correndo atrás dela é que você adoeceu.

Nota: para alívio da mãe, depois de exames foi constatado que Junhão estava apenas com uma gripe forte causada pelo vírus influenza. Ele exagerou os sintomas para ser mimado pela mãe.

Autor: Joswilton Lima   

NOTA DO AUTOR:

Apresento aos leitores dos “Episódios do Junhão” o meu livro de contos “Enigmas da Escuridão”. São quatro estórias com finais surpreendentes. Os contos relatam com minúcias situações dramáticas de seres humanos e, às vezes, divertidas. Esse livro obteve a nota máxima de leitores do site amazon, por isso acredito que será uma boa leitura para todos. Para ler, acesse o link abaixo:

https://www.amazon.com.br/Enigmas-Escurid%C3%A3o-Joswilton-Lima-ebook/dp/B0792K862W

Joswilton Lima é natural de Ilhéus-Ba, mas é domiciliado há mais de vinte anos em Morro do Chapéu. Tem formação em Ciências Econômicas, mas sempre foi voltado para as artes desde a infância quando começou a pintar as primeiras telas e a fazer os seus primeiros escritos. Como artista plástico participou de salões onde foi premiado com medalhas de ouro e também de inúmeras exposições coletivas nos estados da Bahia, Sergipe e Pernambuco. Possui obras que fazem parte do acervo de colecionadores particulares e entidades tanto no Brasil, quanto em países do exterior, a exemplo dos E.U.A, Portugal, Espanha, França, Itália e Alemanha. Possui o site www.joswiltonlima.com onde tem uma mostra de algumas de suas pinturas em diferentes técnicas e estilos, sendo visualizado por inúmeros países.

Em determinada época lecionou pintura em seu atelier no bairro de Santo Antonio Além do Carmo, em Salvador, e foi membro de comissões julgadoras em concursos de pintura. Nesse período exerceu a função de Diretor na Associação dos Artistas Populares do Centro Histórico do Pelourinho (primitivistas e naif’s), em Salvador.

Como escritor também foi premiado em diversos concursos de contos tendo lançado um e-book com o título “Enigmas da Escuridão”, com abordagem espiritualista, tendo obtido a nota máxima de 5 estrelas de leitores do site www.amazon.com.br Outros contos e romances estão sendo escritos.

Concomitante às atividades artísticas sempre exerceu funções laboriosas em diversos setores produtivos, tendo se aposentado recentemente na Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia, onde trabalhou por muitos anos na Fiscalização.

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