Carlos Karoá escreve: ‘A viagem do Grêmio pra Lapão – Ida.’

Em 1967, o Grêmio Estudantil Monsenhor de Aquino Barbosa, elegeu para a sua presidência o jovem Tertuliano Fernandes, filho do velho Terto respeitável cidadão Morrense.A Center Móveis de hoje, era a casa do velho Terto de ontem. Sabia que a agremiação fora nominada assim para homenagear um pároco da igreja da Conceição da Praia em Salvador, mas os meus conhecimentos a respeito do religioso se esbarravam nas escadarias da catedral e nada mais sabia a respeito. Continuo sem saber até hoje. Os grêmios estudantis eram relevantes apêndices culturais juvenis, presentes em todos os colégios daquela época.Hoje nem  sei se existem mais. A secretária de esportes repousava sobre os ombros de Laércio Novais, e não sei por que cargas d’água deram a mim, um tabaréu das barrancas do rio Romão Gramacho, o honroso cargo de secretário de imprensa. Já não lembro mais quem ocupava os demais cargos da diretoria.Quando eu fiquei sabendo, que o secretário de imprensa, no caso eu, teria que acompanhar todos os eventos do aglomerado juvenil, para documentar os fatos, percebi que o meu cargo tinha importância, que não estava ali apenas compondo chapa e essa minha ilusão de grandeza só era perdoável porque eu era um garoto e os garotos são tolos pela falta de experiências vividas.Certo dia Laércio trouxe um aviso para a diretoria gremista. A nossa entidade iria jogar uma partida de futebol contra o Grêmio da cidade de Lapão e o secretário de imprensa no caso eu, teria que acompanhar a delegação para a devida documentação dos fatos. Nem precisa dizer que eu fiquei mais cheio que sapo boi quando engole um calango, uma lagartixa, duas libélulas e um fióte de gambá. Orgulhoso, cheio de pose arrumei minha trouxa roupa, sapato, escova de dentes, título de reservista e num domingo cedinho nos despencamos rumo à cidade de seu Zezé e dona Neta, pais de Costinha, Dinorá, Edilene e Edileusa nossas colegas do colégio N. S. das Graças.

Havia naquela época aqui em Morro do Chapéu, duas camionetas iguais na marca e na cor. Ambas vermelhas e fabricadas pela Ford do Brasil, as conhecidas Roquetes F-100. Uma pertencia a seu Valnier Bagano, pai das minhas queridas Etinha, Valnizete e Leonor e a segunda pertencia ao Sr. Ozieno Barreto Pires, casado com dona Marlene Pires, filha do velho Abderman Neto. Este senhor, a título de adocicadas lembranças, tinha também uma filha chamada Iolanda, tão bonita quanto um pé de São João carregadin de flor. As duas camionetes foram avaliadas e a escolhida para a viagem esportiva foi a do Sr. Ozieno Pires que todo mundo conhecia por Moreno, amante das noitadas frias, aquecidas por saborosos goles da branquinha. Moreno era um homem extremamente elegante, de elevada estatura, cabelos bem penteados, camisa por dentro da calça, segurada por um cinto cuja fivela ele podia pegar, mas não podia ver, tamanha era sua barriguinha proeminente para não dizer barrigão saliente. Educado, atencioso, trabalhador, de voz macia, nosso amigo Moreno vez em quando gostava de botar pra dentro da barriguinha saliente, uma mistura conhecida nos meios etílicos da cidade como “rabo de galo”. A citada mistura consistia em colocar num copo americano, dois dedos de cachaça e mais dois do vermouth Cinzano pra aliviar um pouco a adstringência da tequila. Na primeira talagada do dia ele ainda fazia careta, mas na segunda em diante, Moreno sorvia aquilo como se estivesse tomando um suquinho de guaraná Fratelli vita. Nem piscava. Nos dias dedicados a Baco ele perambulava pelos bares da cidade desde o bar de seu Nino na rua do fogo, no bar de Zezito frente à hoje Casa Rural, até o Drink Bar de Antônio de seu Guilhermino. Mas não fazia este percurso sozinho. levava sempre um violão preto a tiracolo. O ritual era uma dose de rabo de galo e em seguida uma canção de Altemar Dutra. A preferida dele era Sentimental Demais da dupla Jair Amorim e Euvaldo Gouvêa, que ele acompanhava com a posição dos dedos em lá maior, mas a voz saía em fá sustenido menor, uma lástima para quem estivesse suficientemente perto dele pra ouvir. E foi este amigo de todos nós o motorista pra nossa viagem de cunho desportivo pra cidade de Lapão. Fomos recebidos efusivamente pelo grupo de jovens do colégio de lá. O secretário de imprensa do Grêmio irmanado se chamava Gilvan e naturalmente fomos apresentados. Durante as preliminares trocas de informações, eu sempre dava um jeito de encaixar citações literárias que havia decorado antes, só pra deixá-lo impressionado, imaginando que o secretário de imprensa visitante era sabidamente culto e inteligente. Coisa de menino besta mesmo. mas, naquela época eu pensava que aquilo valia alguma coisa. Apenas Nilton de Lauro, Lourinho, Getúlio Pinheiro, Fernando Santana e Laércio Novais tinham mais experiência em campo, os outros jogadores, eram medianos, arrumados para compor o time. Afinal não era a seleção principal de futebol do Morro, era apenas uma disputa entre duas agremiações colegiais, um entrevero cultural pra sair da rotina. Nesta tarde, fomos os vencedores do embate. Dois gols de Lourinho contra um dos adversários. placar de 2 x1 pra galera da terra do frio.

À noite, depois da janta, fomos para o clube para uma festinha de confraternização. Quando chegamos lá nosso motorista Moreno, já tinha beliscado duas doses de rabo de galo, um tiquinho de vodka Orloff e estava bebendo uma cervejinha Brahma chopp pra esfriar as tripas já um tanto quentes pela branquinha malvada. Ele nos olhou por alguns segundos, mas continuou seu caminho como se beber e dirigir fosse a coisa mais comum desse mundo. O público na maioria era de alunos e alunas do colégio local, mais alguns abnegados do futebol lapoense. No salão, o som era mecânico. Uma radiola Philips daquela que se partia no meio e de um lado ficava o toca discos e do outro a caixa de som. Discos da jovem Guarda espalhados sobres as mesas, umas meninas bonitinhas, cerveja, piruetas de iê iê iê, voleios, umas mentirinhas tipo “você é a menina mais bonita que conheci” e as promessas voadoras tipo “vou voltar aqui pra lhe ver no mês que vem” anunciamos então que já estava na hora de pegar a estrada, logo logo, pois já passava da meia noite. Após os agradecimentos de praxe, apertos de mãos, abraços, promessas de missivas, ofícios pra outros embates amistosos, pegamos o caminho de volta.

Na carroceria o time inteiro, na boléa o presidente Tertuliano Fernandes e nosso motorista. Naquela hora às ruas da cidade já estavam em breu profundo. não se via vivalma perambulando por vias ou becos. vez em quando um latido de cachorro chegava como um lamento hipotérmico pela adiantada hora da noite. Assim que saímos das ruas e chegamos na estrada, a F100 começou a beirar os dois lados da pista, parecendo um cão perdigueiro cheirando , farejando ora de um lado ora de outro, como eles fazem em lugares notadamente suspeitos. Ia de um lado para o outro numa evidência claríssima que algo estava fora dos eixos. No começo da viagem a gente não prestou muita atenção nestes detalhes, pois todo mundo tava procurando um lugar pra se acomodar, se proteger da frieza da noite que já prometia baixas temperaturas. A camionete não tinha capota e o vento potenciava a tremedeira no queixo. Era início de madrugada e a F100 continuava seu caminho em marcha acelerada, com uma zuada bonita peculiar dos motores Ford. Depois de meia hora de gasolina queimada alguém fez a já esperada observação: Gente, eu não estou gostando nada deste Zig Zag na pista não, Moreno tá bêbado.

E aí, cada um começou a fazer uma observação negativa da situação. E perigoso demais dizia um, a coisa tá feia dizia outro, só Deus pra nos ajudar retrucava mais um e o bichinho do medo iniciou o seu passeio na cabeça de todo mundo, quando uma advertência foi quase gritada por alguém da turma: E quando chegar nas lages? Se ele perder o controle do carro vamos cair lá embaixo na ribanceira. Ai não deu outra, começaram a bater no teto  da boléa pedindo gritando pra parar o carro. Felizmente Moreno não criou problema e vagarosamente foi parando a camionete até estacionar no meio da pista. Estávamos a 60 km de distância de Morro do Chapéu. O elegante Ozieno abriu a porta do carro e saltou calmamente. Não desligou o motor, deixou a roquete em ponto morto contando os giros dos pistons. Também não desligou as luzes. Os faróis acesos pareciam dois bólidos varando o negrume da noite. Trilhões de partículas de poeira dançavam no foco de luz dos faróis, numa cena digna de filmes hollywoodianos. Trágico mas lindo demais. E foi nesta aquarela de luzes em preto e branco que ele procurou saber por que pedimos pra parar o carro. Indagou solenemente: Qual é o problema? A voz soou pegajosa, estava deverasmente bêbado.

Laércio, o chefe da delegação fez educadamente as devidas ponderações. Que ele estava cansado, que tinha bebido uns rabos de galo há mais e que seria aconselhável dar o carro a Nilton de Lauro pra dirigir. Moreno protestou calmamente, mas não arredou pé. Disse ele: Carro meu só quem dirige sou eu. Alguns mais exaltados sem ter noção do é mexer com um bêbado fizeram a sonora afirmação: Com você dirigindo a gente não vai. Moreno não engoliu o desaforo e retrucou: Como é que é?

É sim. Reafirmaram os desavisados. Moreno olhou pra gente com aquele olhar de deboche e de nem tô nem aí, avaliou a situação por alguns segundos e rebateu na lata: Está bem, se vocês não vão, fiquem aí. Ato contínuo entrou na F100, bateu a porta e arrancou. Revoltante em toda está história, é que nosso presidente não deu um pio sequer. Permaneceu mudo e encolhido na boléa com medo do frio, de Moreno e do olhar dos seus colegas. Lamentável. Prometi a mim mesmo que quando chegasse no Morro iria fazer uma moção de repúdio e desagravo pelo seu inadequado comportamento. Quando Moreno nos deixou, o nosso olhares eram de incredulidade. Ficamos a olhar as duas lanternas traseiras na esperança delas se iluminarem quando os freios são acionados, mas isto não aconteceu. Elas foram sumindo, sumindo vagarosamente até se perderem na escuridão da noite.

Conclusão no próximo episódio.Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não

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