Carlos Karoá escreve: “A viagem do grêmio para Lapão II: ‘A Volta’!”

Protestamos, xingamos, fizemos gestos obscenos, mas nada adiantava naquela hora. Não havia outra alternativa a não ser encarar os quilômetros noturnos na volta pra casa. Caminhar cansado, com frio, numa estrada de cascalho no início da madrugada, posso lhes assegurar não é uma coisa fácil.

A cena do embate entre Moreno e nós, os rapazes do time, foi digna de um episódio da saga Star Wars de James Cameron, a conhecida Guerra nas Estrelas. O cenário era simplesmente deslumbrante. Miríades de estrelas espiavam lá dos céus o que ocorria naquele instante. Uma camionete parada no meio de uma estrada poeirenta, um motor em funcionamento, contando os giros dos pistões em ponto morto, faroletes acesos como holofotes varando a escuridão noturna e uma lua cheia no início de sua caminhada prateada pelos céus, deixando ao redor de tudo uma luminosidade branca em todos os lugares possíveis ao alcance da nossa visão. A discussão durou apenas alguns minutos. Sem acordo, sem consenso, Moreno foi embora e nos deixou profundamente incrédulos, no meio do nada, passando da meia noite curtindo um frio de doer na alma.

Decidimos por fim, que deveríamos imediatamente dar início a nossa caminhada em direção de casa. Agora, sem a presença dos faróis, todo o cenário estava iluminado pela luz da lua. Quanta beleza nos dava a natureza sem cobrar nada por isso. A caminhada era em ritmo normal, não se podia forçar o passo. Tínhamos acordado cedo, alguns tinham disputando uma partida de futebol à tarde, alguns dançaram na restinha lá no clube, então a coisa tinha que obedecer a parâmetros apesar da nossa juventude e juventude às vezes nem sempre pode tudo. Caminhamos por horas sem parar. Vez em quando alguém relembrava a cena e a gente desandava a dar risadas que duravam tanto tempo que parecia não parar nunca. Depois o silêncio voltava e o ritmo das passadas voltava ao compasso de antes.

Formávamos grupos de dois ou três amigos e caminhávamos juntos com a alternância involuntária de membros do bando. Dos ajuntados que ficavam para trás, ouvíamos apenas a zuada das pisadas no cascalho da estrada e os sons inteligíveis dos rumores daquilo que diziam. A lua estava a mais ou menos 45 graus em relação a sua posição nós céus. Era ainda o início da sua jornada para o alto, para o lado leste do mundo. Olhar a lua naquela hora era como se uma criança estivesse a olhar a imensa testa de um gigante. O vento sossobrava nesta hora o topo dos galhos das plantas da beirada da estrada. Assobiava baixinho, sorrateiro, implacável. Nunca tinha passado por tanto frio em minha vida. Num descampado onde a brisa não encontra obstáculos, seu manto gelado dói do cucuruto da cabeça ao dedão do pé. Nuvens stratus cobriam vez em quando o círculo lunar e pareciam formar imagens luzentes de eras longínquas e inimagináveis. Para ver, eu caminhava de costas para o leste e deixava a minha imaginação dar asas, viajar a milhões de km por hora. Em segundos no contorno da lua se formavam a imagem de grandes mamutes com suas trombas jurássicas, cabeçorras de panteras com enormes fossetas lacrimais indicando a amarelidão dos seus olhos frios. Sabia que nessa hora minha mente ajudava nas criações das borrascas noturnas, vindas dos mares da Bahia, cuja capital Salvador eu ainda não conhecia. E nessa quimera de nuvens, luz lunar e romantismo cheguei a imaginar um rosto de anjo, com imensas asas brancas e olhos verdes, que me sorria como se eu fosse único. Era o anjo sumindo lentamente e eu pedindo para ele não ir embora, para não me deixar nunca mais.

Horas depois, com a lua lá no alto, iluminando a cumeeira da testa, chegamos ao povoado de Caldeirão da Onça, hoje conhecido como Ipanema. Não dava mais pra continuar. Estávamos cansados demais. O esforço foi notadamente sentido por todos nós. Procuramos as casas mais perto da pista e nos encostamos-nos aos oitões laterais tentando nos proteger do frio que nesta hora castigava pra valer. Sentou-se junto a mim o meu amigo Getúlio Pinheiro, com seu blusão de frio tipo “burro quando foge”, que curiosamente eu também usava um igual, era muito comum naquela época. Estava todo mundo tentando dormir um pouco para aliviar o cansaço, quando percebi lá no meio da estrada, parado, olhando pra gente um solitário jumento. Estava quieto, mas não deixava de olhar em nossa direção. Ele devia fazer diariamente aquele caminho e percebeu que havia alguma coisa encostada nos oitões daquelas casas, que antes ele não tinha visto. Matutou por alguns minutos, imaginando o que poderia ser talvez algumas sacas de milho, farinha ou outra coisa qualquer que chegasse pro seu bico e pensando assim resolveu investigar. Depois de olhar prós lados, desconfiado, iniciou seu caminho em direção a gente. Veio certinho na minha direção. Quando já estava chegando perto, diminuiu o passo e farejou o ar, perscrutando o ambiente com a cautela natural dos animais. Eu estava de olhos abertos, só esperando a hora certa de dar nele o maior susto da sua vida. Quando o focinho já beirava o meu blusão de frio, eu me levantei de supetão e dei um grito tão horripilante que o fez saltar de costas tão rápido como se estivesse sobre molas. Emitiu um relincho de sobressalto e raiva e saiu em disparada, bufando de medo como se tivesse visto assombração. Só parou quando estava a um bom pedaço distante de nós. A risadaria foi coletiva, serviu pra descontrair um pouco. Até hoje quando Getúlio me encontra faz sinal de duas orelhas colocando os dedos no rosto. Rimos de novo.

Depois de um século de espera o dia amanheceu. Sem água, sem café, sem nada iniciamos novamente a nossa caminhada em direção leste. O sol mal despertara pro seu caminho matinal e a gente já tava na labuta. Depois de algum tempo gastando o solado das botinas, ouvimos a Santa zuada de um motor de carro. Olhamos para trás e era um carro mesmo. Era um velho caminhão que fazia o transporte de sacas de cal para a região e redondezas. Estava vazio, batendo a carroceria como se dizia na época. Nós acenamos, o motorista deu nos freios e o carro parou no acostamento. Laércio, nosso chefe chegou pra ele e perguntou: O Senhor Pode levar a gente aí até o Morro? O homem olhou a quantidade de pessoas e imaginou que poderia agregar algumas moedas no seu Diminuto cofrinho. Respondeu com uma inquisição embutida na permissão. Disse ele: Posso, mas vocês poderiam dar uma ajudazinha pra gasolina? A gente nem esperou segunda ordem. Fomos gritando que sim e pulando na carroceria do caminhão, vazia, mas toda suja de cal.

Bastaram uns vinte minutos de viagem pra todos nós envelhecermos setenta anos. O cal e o vento deixaram todo mundo de cabelos brancos, até as sobrancelhas caíram na dança. Não era possível olhar a cara um do outro sem cair em deliciosas gargalhadas. Naquele tempo não existia asfalto. A viagem era demorada porque os sulcos nas estradas conhecidas como costelas de vacas não permitiam grandes velocidades e por isto só perto de Meio dia, chegamos a Morro do Chapéu. Havia um problema a ser enfrentado na chegada. Ninguém tinha dinheiro pra pagar o homem do carro. Estudante e dinheiro não são parceiros de fé. Então, cada um tinha que ser por sua conta e risco. Ficamos preparados e assim que o carro parou bem em frente à oficina de Flamarion, iniciou-se uma debandada por ambos os lados da carroceria. Era pulando e correndo para não ser pego pelo homem do carro.  Bons tempos aqueles. A gente ganhava pouco, mas era divertido. Doces lembranças, inesquecíveis, indeléveis na memória de quem viveu a vida, tendo a consciência que ela é única. Fiz a moção de repúdio ao comportamento do presidente Tertuliano Fernandes, o frívolo peralta, mas ele saiu ileso. Nem um puxão de orelhas por parte do padre Juca. Não nos cabe julgar o comportamento do nosso presidente, se certo, se errado, a certeza que tenho mesmo é que até um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes por dia. Assim seja.

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

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