Catolicismo à baiana, devagar, quase parando.
Você pode conferir a série anterior a partir deste link: Do Sentido da vida a autoridade da
Este texto é parte de uma nova série:
1º –Por que Jesus fez tudo isso? 2º –A Criação 3º – Os seres espirituais 4º– O Pecado e o Mal: Uma Criação Angélica 5º “O que é o mal?” – Uma anatomia da
ausência. 6º – Pecado: o mal escolhido 7º A imagem rachada
Restaurando-nos pela graça
Já sabemos que a Encarnação de Deus Filho, Jesus Cristo, é a resposta para restaurarmos a imagem rachada da nossa humanidade caída. Também abordamos que a Igreja é o meio pelo qual Jesus escolheu fazer chegar a nós os méritos de sua paixão, mas como de fato isso acontece? Como se dá o processo de salvação em nossas vidas, de modo concreto e visível? A resposta está na graça, a qual, como veremos, é a forma de salvação oferecida a todos nós.
Em nossas orações, ouvimos frequentemente expressões como “Senhor, dai-me a vossa graça” ou “foi pela graça de Deus”. Mas o que é, afinal, a graça? Será apenas uma ajuda moral? Um sentimento de paz interior? Um modo poético de falar do amor de Deus? A resposta da fé católica é clara: a graça é real, eficaz, transformadora — e sem ela, não há salvação.
O Concílio de Trento, em resposta à confusão provocada pela Reforma Protestante, afirmou com precisão que a graça é “um dom gratuito de Deus”, infundido no coração do homem pelo Espírito Santo, que nos justifica, ou seja, nos transforma interiormente e nos torna verdadeiramente filhos de Deus (Decretum de Justificatione, cap. 7). Ela não é algo exterior, como se Deus simplesmente nos declarasse justos sem que fôssemos de fato transformados. Ao contrário, ela é participação real na vida divina.
Vi certa vez o professor Fábio Salgado dizer que a graça é “o meio pelo qual Deus propaga seu amor na natureza humana”. Não sei se essa definição lhe pertence integralmente ou se vem de uma linhagem anterior, mas é notável o quanto ela expressa bem o núcleo da doutrina católica: a graça não é algo que se opõe à nossa natureza, mas o modo pelo qual Deus transborda Seu amor em nós, tocando nossa natureza humana e elevando-a à comunhão com Ele.
É por isso que São Tomás de Aquino, no início da Suma Teológica, afirma que “a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa” (gratia non tollit naturam, sed perficit — I, q. 1, a. 8, ad 2). Essa é uma chave para entendermos tudo o que a Igreja ensina sobre a graça: Deus não nos anula com sua ação. Pelo contrário, Deus quer salvar-nos como humanos, respeitando nossa liberdade, nossa inteligência, nossa história — mas curando, iluminando e fortalecendo tudo isso com seu dom gratuito.
Os dois sentidos da palavra “graça”
A palavra “graça” na tradição católica tem mais de um sentido, todos relacionados entre si, mas distintos:
- Graça santificante (ou habitual): é a presença permanente de Deus na alma, que nos torna santos e agradáveis a Ele. Essa graça é infundida no Batismo e é a condição
essencial para a salvação. Se a perdermos por pecado mortal, só a recuperamos pela confissão sacramental.
- Graças atuais: são impulsos passageiros de Deus que nos movem ao bem, à conversão, ao arrependimento, à prática das virtudes. Podem ocorrer mesmo antes da pessoa estar em estado de graça, como preparações para a conversão.
- Graças sacramentais: são aquelas recebidas de modo especial em cada sacramento, conforme sua finalidade (por exemplo, a graça de fortalecimento na Confirmação, a graça de unidade e fecundidade no Matrimônio, etc.).
- Graças especiais (ou carismas): são dons dados para o bem da Igreja, como dons de cura, de ensino, de governo, de línguas, etc. Não são sinais de santidade pessoal, mas instrumentos para a edificação do Corpo de Cristo.
Tudo isso forma o grande tesouro da ação de Deus na alma humana. Por isso, é essencial não reduzir a graça a algo vago ou subjetivo. A graça é dom real, objetivo e transformador. É por meio dela que somos salvos.
A graça e a liberdade humana
Uma das maiores dificuldades que surgem na compreensão da graça é a aparente contradição com a liberdade humana. Se Deus dá a graça, então o mérito é Dele, e não nosso. Mas se somos livres, então a graça não pode ser necessária… Como resolver isso?
A resposta católica é equilibrada: sem a graça, não podemos nem sequer começar a nos voltar para Deus (cf. Jo 15,5: “sem mim nada podeis fazer”), mas com a graça, nossa liberdade é elevada, não anulada. Deus age em nós de modo tão íntimo que Ele nos move por dentro, respeitando e sustentando nossa liberdade. Somos nós que cremos, que escolhemos, que amamos — mas é Deus quem nos dá o querer e o realizar (cf. Fl 2,13).
A Igreja rejeita tanto o pelagianismo, que dizia ser possível salvar-se sem a graça, quanto o determinismo protestante, que anulava a liberdade humana. Santo Agostinho, que combateu o pelagianismo com vigor, dizia:
“Aquele que te criou sem ti, não te salvará sem ti” (Sermão 169,13).
A graça e os sacramentos
A graça é comunicada principalmente pelos sacramentos, que são sinais sensíveis e eficazes da graça. O Batismo, por exemplo, apaga o pecado original e infunde a graça santificante. A Eucaristia alimenta essa graça, a Confissão a restaura em caso de perda, e assim por diante.
Por isso é tão grave viver afastado dos sacramentos: é como querer viver sem respirar. A graça é o “ar” da vida cristã. Não podemos conquistá-la com nossas forças naturais. É dom. Mas Deus quis nos dar esse dom por meios visíveis, adaptados à nossa condição humana, e é isso que torna os sacramentos tão preciosos.
A graça como amizade com Deus
São Tomás define a graça santificante como “uma participação da natureza divina” (STh I-II, q. 110, a. 1). Isso quer dizer que a graça nos eleva à condição de filhos de Deus, mais do que apenas criaturas. É por isso que o Catecismo afirma:
“A graça é o favor, o auxílio gratuito que Deus nos dá para responder ao seu chamado: tornar-nos filhos de Deus, filhos adotivos, participantes da natureza divina e da vida eterna” (CIC 1996).
Essa linguagem de “filiação” é importantíssima. Pela graça, Deus nos acolhe em sua casa, como o Pai que acolhe o filho pródigo. Não somos apenas servos tolerados: somos amigos (cf. Jo 15,15), herdeiros (cf. Rm 8,17), templos do Espírito Santo (cf. 1Cor 6,19). Isso muda tudo na nossa vida espiritual: não obedecemos a Deus por medo, mas por amor; não vivemos para ganhar um prêmio, mas para não perder uma Pessoa — a Pessoa do próprio Deus.
E por que Deus nos dá sua graça?
Porque Ele é amor. E o amor verdadeiro é sempre difusivo, ou seja, tende a sair de si, a comunicar-se. Santo Tomás ensina que Deus, sendo sumamente bom, deseja comunicar sua bondade às criaturas (cf. STh I, q. 6, a. 4). Essa comunicação se dá pela criação, mas atinge o seu ápice na graça. Criar-nos foi um ato de amor. Santificar-nos é o amor levado ao extremo.
São João da Cruz resume isso dizendo que:
“Deus quer elevar a alma à união com Ele mesmo. E, como o fogo transforma tudo em si, assim Deus quer transformar a alma na sua própria vida, pela graça” (Chama Viva de Amor, estrofe 1).
A graça é o maior dom que podemos receber nesta vida. Ela é a ação íntima de Deus em nós, curando-nos, iluminando-nos, elevando-nos — e nos fazendo capazes de viver como filhos de Deus. Ela é o meio, como disse o professor Fábio Salgado, pelo qual Deus propaga seu amor na natureza humana.
Sem graça, somos apenas poeira. Com ela, tornamo-nos partícipes da glória divina. Por isso, toda vida cristã deve ser uma vida de abertura à graça — de vigilância, oração, vida sacramental, humildade. E quando nos perguntarmos “como amar a Deus?”, a resposta virá: pela sua graça. Ele mesmo nos dará o que exige de nós.
Indicações bibliográficas:
Decretum de Justificatione – Decreto do concilio de Trento sobre a Justificação. Suma teológica – St Tómas de Aquino
Sermão 169, 13 – St Agostinho Chama viva de amor – St João da Cruz
Franklin Ricardo, Católico, esposo, pai de quatro filhos, estudante de artes liberais, filosofia e teologia, apaixonado pela cultura latina e pelos grandes clássicos da cultura ocidental; ex-ateu, converso pela graça santificante.