Catolicismo à baiana, devagar, quase parando.
Você pode conferir a série anterior a partir deste link: Do Sentido da vida a autoridade da Igreja. Este texto é parte de uma nova série:
1º –Por que Jesus fez tudo isso? 2º –A Criação 3º – Os seres espirituais 4º– O Pecado e o Mal: Uma Criação Angélica 5º “O que é o mal?” – Uma anatomia da ausência.
“Pecado: o mal escolhido” — Entre a desordem da vontade e a hierarquia do bem
“Fizeste-nos para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti.” — Santo Agostinho, Confissões, I, 1,1
Se o mal é uma ausência, o pecado é a ausência que criamos ao virar as costas para o bem.
Começamos nossa reflexão anterior compreendendo o mal como aquilo que não tem substância própria — uma sombra projetada pela ausência do bem, um buraco no tecido do ser. Agora, entramos em terreno mais íntimo: o mal que se torna pessoal, o mal escolhido — o pecado.
O que é o pecado?
O Catecismo da Igreja Católica (n. 1849) define o pecado como “uma falta contra a razão, a verdade, a consciência reta; é uma falta de amor verdadeiro para com Deus e para com o próximo por causa de um apego perverso a certos bens. Fere a natureza do homem e atenta contra a solidariedade humana”. Santo Tomás de Aquino, com sua precisão cirúrgica, chamava-o de aversio a Deo et conversio ad creaturam — afastamento de Deus e apego desordenado às criaturas.
O pecado não é um tropeço acidental ou uma falha inconsciente. Não se peca por descuido, mas por consentimento. É uma escolha voluntária, ainda que envolta em ignorâncias, feridas ou fraquezas. É sempre um ato da liberdade humana — uma liberdade ferida, sim, mas ainda responsável. É, em última análise, uma ruptura de amor.
Pecado original e pecados pessoais
Para compreendermos a extensão da ferida que o pecado provoca na alma, é necessário distinguir duas realidades: o pecado original e os pecados pessoais.
O pecado original não é uma culpa pessoal de cada indivíduo, mas uma condição herdada — uma ruptura da harmonia original entre o homem e Deus, introduzida pela desobediência de Adão. Como ensina São Paulo: “como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5,12). Em Adão, a humanidade caiu; em Cristo, pode ser redimida. Herdamos uma natureza ferida, inclinada à desordem, à fuga de Deus, à busca desorientada por uma felicidade que só Nele se cumpre.
Mas é nos pecados pessoais que essa inclinação se torna escolha. Os pecados pessoais são os atos concretos pelos quais cooperamos livremente com essa desordem interior. São os “sim” que damos à concupiscência — à inclinação desregrada que habita nossos afetos e desejos. Essa inclinação, embora não seja pecado em si, é o campo onde os vícios podem se enraizar.
Os pecados capitais, nesse contexto, nos ajudam a enxergar como o mal se infiltra e se estrutura na alma: são vícios radicais, hábitos enraizados que alimentam a concupiscência e tornam o pecado uma segunda natureza. Soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça — esses são os “troncos” a partir dos quais brotam inúmeros atos pecaminosos. São formas de amar desordenadamente, cada qual desviando o coração do bem maior para bens menores, idolatrados como absolutos.
Nem todo pecado, no entanto, tem o mesmo peso. A Igreja, com sabedoria pastoral e precisão teológica, distingue entre pecados veniais e pecados mortais.
O pecado mortal é aquele que destrói a caridade no coração do homem, rompendo a comunhão com Deus. Para que um pecado seja mortal, são necessárias três condições simultâneas:
- Matéria grave — isto é, uma violação séria da lei moral (como o assassinato, o adultério, a apostasia, entre outros).
- Pleno conhecimento — a pessoa sabe que aquilo é pecado, entende a gravidade do ato.
- Consentimento deliberado — a pessoa escolhe livremente o ato, com vontade firme, sem coação ou ignorância invencível.
Se falta uma dessas três condições, o pecado é venial. O pecado venial não rompe a amizade com Deus, mas a enfraquece. É como um arranhão na alma — pequeno, mas real. Pode parecer inofensivo, mas sua repetição constante anestesia a consciência, abre brechas para o vício e prepara o terreno para pecados mais graves.
É preciso dizer: o venial não é trivial. Santo Afonso de Ligório dizia que o que mata uma alma não é a queda de um abismo de uma só vez, mas a sucessão de pequenos degraus descendo sempre. Por isso, os santos tinham horror ao pecado venial, não por escrúpulo, mas por amor.
A vida moral, então, é uma luta constante entre essa inclinação herdada — que puxa para o centro da terra — e o chamado da graça, que eleva a alma ao céu. Os pecados pessoais são o campo de batalha onde nossa liberdade se mostra: não apenas como capacidade de escolher, mas como capacidade de escolher o bem. Pecar é sempre uma má escolha do amor: amar o bem menor como se fosse o maior, ou amar a si mesmo mais que a Deus.
A hierarquia do amor — e sua inversão
Há uma ordem no amor que estrutura a vida moral: amar primeiro a Deus, depois o próximo, a alma, o corpo, e por fim os bens materiais. Essa hierarquia foi belamente expressa por Santo Agostinho como ordo amoris — a ordem do amor. O pecado acontece quando invertemos essa ordem.
Pensemos em exemplos simples: quando alguém coloca o dinheiro acima da família, ou a própria imagem acima da verdade, ou o prazer acima da fidelidade. São inversões sutis, mas poderosas.
Nem todo pecado, porém, tem o mesmo peso. A Igreja distingue entre pecados veniais e mortais. Um pecado mortal destrói a caridade no coração, corta a vida da graça; um pecado venial fere, mas não mata a amizade com Deus. Como ensina o Catecismo (n. 1855), para que haja pecado mortal é necessário: matéria grave, pleno conhecimento e consentimento deliberado.
Ainda assim, mesmo o mais grave pecado tem uma história. Por trás do ato visível, há uma alma marcada por lutas, traumas, seduções. Isso não justifica o pecado — mas ajuda a compreender a extensão da misericórdia de Deus. O contexto não apaga o pecado, mas ilumina a misericórdia. O Senhor conhece a estrutura de barro com que fomos moldados (cf. Sl 103,14).
Por que escolhemos o pecado?
Essa talvez seja a pergunta mais angustiante. Por que, mesmo sabendo o que é certo, tantas vezes escolhemos o errado? São Paulo exprime essa tensão com honestidade desconcertante: “O bem que quero, não faço; o mal que não quero, isso faço” (Rm 7,19). Aqui se revela a concupiscência — essa inclinação desordenada que habita nossos afetos e desejos. Não é pecado em si, mas o campo onde o pecado se insinua. A alma se torna um campo de batalha entre a luz da graça e as sombras do egoísmo.
O pecado nos atrai porque, como a maçã envenenada dos contos, vem coberto de brilho, perfume e promessas. Apresenta-se como liberdade, mas escraviza; como prazer, mas desgasta. Hoje, ele é vendido como empoderamento, autenticidade e direito inalienável. Vivemos numa cultura que entroniza o desejo como critério de verdade — consumo, prazer imediato, narcisismo — tudo isso disfarça a serpente com maquiagem de anjo.
A cena do Éden permanece emblemática. Eva não foi apenas seduzida pela fruta, mas pela lógica do pecado: “Sereis como deuses” (Gn 3,5). O demônio não oferece o inferno, mas um paraíso sem Deus. A proposta da serpente não é a transgressão escancarada, mas a caricatura da liberdade: uma autonomia que se pretende absoluta, sem vínculo, sem obediência, sem comunhão. E isso, que parece emancipação, é justamente a queda.
A concupiscência se torna, então, a falsa liberdade — aquela que busca se livrar da lei de Deus sem compreender que fora do amor tudo degenera em servidão. O pecado não nasce da liberdade autêntica, mas da sua paródia. É a alma dizendo “eu quero” sem saber quem é o “eu” e o que, de fato, deseja.
É preciso coragem para admitir que o pecado é a caricatura do bem. O vício é a virtude deformada: a gula é a festa sem gratidão; a luxúria, o amor sem compromisso; a avareza, a prudência sem generosidade. Por isso, a luta contra o pecado não é uma negação da natureza humana, mas sua purificação e elevação. Não somos chamados a anular nossos desejos, mas a ordená-los — a dirigir nossas potências para o bem verdadeiro, que é sempre um bem com Deus, nunca contra Ele.
Aqui, muitos se perdem: uns por medo, tornam-se escrupulosos — veem pecado em tudo, inclusive onde não há; outros, por comodismo, tornam-se laxistas — já não distinguem entre a queda e o abismo. A virtude, no entanto, é o caminho do meio, como bem ensinavam os antigos: o equilíbrio entre os extremos, fundado não na mediocridade, mas na harmonia da razão iluminada pela fé.
E há um ponto fundamental que precisa ser resgatado na mentalidade moderna: não é nossa natureza que é pecado. O ser humano foi criado bom, à imagem e semelhança de Deus. A natureza humana, mesmo ferida, conserva traços da sua dignidade original. O problema não está em sermos humanos, mas em usarmos mal aquilo que é próprio de nossa humanidade. Não é o corpo que é pecado, nem o desejo em si, nem a razão, nem a vontade. Mas quando qualquer desses dons se volta contra sua finalidade — quando o bem se torna absoluto ou o desejo se torna rei — aí nasce o desvio.
Entender isso é preparar o coração para uma pergunta ainda mais profunda: o que é o homem? — tema que nos espera na próxima reflexão. Porque, afinal, se não sabemos quem somos, não entenderemos por que caímos… nem como podemos nos reerguer.
A cura da alma ferida
Mas a última palavra não é a queda — é a cura. A cruz de Cristo não apenas perdoa, mas regenera. Na confissão, recebemos o bálsamo que restaura a graça perdida. Na Eucaristia, alimentamo-nos da própria vida divina. Pela oração, reeducamos o coração desordenado. A pedagogia de Deus é paciente — Ele ensina a alma a amar de novo, na ordem certa.
“Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; Deus é fiel: não permitirá que sejais tentados além das vossas forças, mas com a tentação vos dará também o meio de suportá-la e sair dela” (1Cor 10,13). Que promessa!
Santo Agostinho, em sua inquietude luminosa, resume o anseio do coração humano: “Fizeste-nos para Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti.” O pecado é desordem, inquietação, confusão. Mas o amor de Deus, derramado em nossos corações (cf. Rm 5,5), é o início da verdadeira liberdade — aquela que repousa na Verdade.
Indiciações bibliográficas:
RECONCILIATIO ET PAENITENTIA – SOBRE A RECONCILIAÇÃO E A PENITÊNCIA NA MISSÃO DA IGREJA HOJE
FONTES DA MORAL CRISTÃ, AS – SEU MÉTODO, SEU CONTEÚDO, SUA HISTÓRIA – SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS
O drama do humanismo ateu – Henri de Lubac
Franklin Ricardo, Católico, esposo, pai de quatro filhos, estudante de artes liberais, filosofia e teologia, apaixonado pela cultura latina e pelos grandes clássicos da cultura ocidental; ex-ateu, converso pela graça santificante.