Esta coluna faz parte de uma série; confira os textos anteriores:
1º – O Sentido da vida 2º – Que Deus? 3º– Que Deus²? 4º -Onde ele está?
5º -Onde ele está?² 6º -Quem é Jesus Cristo?
7º -A Divindade de Jesus: O Trilema de Lewis e o Mistério da Encarnação
8º -O que Jesus pregou e o que ele veio esclarecer?
9º O Mistério da Santíssima Trindade; Cremos em um só Deus!
Catolicismo à baiana, devagar, quase parando:
O Mistério da União Hipostática e a Encarnação do Verbo
Na sequência de nossa reflexão sobre Deus como o sentido da vida e a fonte de toda perfeição, chegamos agora ao ponto central da história da salvação: a União Hipostática e a Encarnação do Verbo. Trata-se de um dos maiores mistérios da fé cristã e também de uma ponte que conecta as verdades que exploramos anteriormente à realidade da redenção em Cristo. Por meio dela, Deus não só revela quem Ele é, mas também nos chama a participar de sua própria vida divina. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), é a afirmação bíblica que encapsula essa realidade.
Ao refletirmos sobre os atributos divinos explorados nas colunas “Que Deus? ²” e “Que Deus? ³” – simplicidade, infinitude, imutabilidade, eternidade, unidade e inefabilidade –, vemos como a União Hipostática desafia nossa compreensão limitada. Como o Eterno pode se fazer presente no tempo? Como o Infinito pode habitar um corpo humano finito? Esses paradoxos, que transcendem a razão humana, revelam o mistério de um Deus que não se limita à sua própria grandeza, mas desce para nos encontrar em nossa condição. Como disse o Papa São Leão Magno: “O Filho de Deus se fez Filho do Homem para que o homem pudesse ser filho de Deus.”
É através da União Hipostática, conceito essencial do dogma cristão que compreendemos como Deus resolve esse problema, é à união das duas naturezas – divina e humana – em uma única pessoa: Jesus Cristo. Como o Concílio de Calcedônia esclareceu no ano 451, Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, consubstancial ao Pai segundo a divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade. O texto do concílio proclama: “Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, reconhecido em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação; a distinção entre as naturezas jamais sendo anulada por causa da união, mas a propriedade de cada natureza sendo preservada e concorrendo para formar uma só pessoa e uma só subsistência”. Este conceito é ampliado por São Leão I, que escreveu: “Ele que é verdadeiro Deus, nasceu em perfeita humanidade, completa em Deus e completo em homem.”
A União Hipostática é uma expressão do amor incomensurável de Deus. Ele não apenas observa nossa realidade de fora, mas entra nela, assumindo nossa humanidade com todas as suas limitações, exceto o pecado. Cristo experimenta fome, sede, dor e morte – realidades que são completamente estranhas à natureza divina, mas que Ele abraça para redimir a humanidade. “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Esse movimento de Deus em direção ao homem é um convite para que também nos abramos à sua graça transformadora. Como São Paulo escreve: “Ele, existindo em forma divina, não considerou o ser igual a Deus algo a que devia apegar-se, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens; e, encontrado em aspecto humano, humilhou-se, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8). Este ‘esvaziamento'(Kénosis) é, ao mesmo tempo, uma demonstração da humildade divina e um modelo de entrega total ao plano do Pai.
A Encarnação do Verbo é o ponto culminante da revelação divina e o cumprimento das promessas feitas ao longo de toda a história da salvação. Esse versículo encapsula a profundidade do mistério da Encarnação. Como comenta Santo Agostinho em suas Confissões, “o Verbo eterno, por quem todas as coisas foram feitas, fez-Se mortal para que a mortalidade fosse revestida de imortalidade”. São João Crisóstomo, em suas homilias, reflete que este ‘habitar entre nós’ não é apenas um ato de presença, mas de partilha da nossa condição, demonstrando que Deus não rejeita o que é humano, mas o eleva e o transforma. Tal realidade é o fundamento da nossa esperança e a fonte da nossa dignidade. Essas palavras de São João Evangelista não só expressam um fato histórico, mas também encerram uma profundidade teológica inesgotável. Deus se fez um de nós para nos salvar por dentro, não de fora.
A encarnação é a resposta definitiva ao problema do pecado e da morte. Por meio de Jesus Cristo, Deus assume nossa condição mortal para nos elevar à participação em sua vida imortal. Ele não nos salva apenas com palavras ou mandamentos, mas se oferece como exemplo e como sacrifício. Como está escrito: “Ele apareceu uma vez por todas, no fim dos tempos, para aniquilar o pecado mediante o seu sacrifício” (Hb 9,26). E São João Damasceno medita sobre esse sacrifício, afirmando: “Cristo não ofereceu um sacrifício comum, mas ofereceu-se a Si mesmo, uma vez por todas, para tirar os pecados do mundo.” Além disso, São Pedro recorda: “Ele mesmo carregou os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro, a fim de que, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por suas feridas fostes curados” (1Pd 2,24). Essas passagens iluminam o papel redentor de Cristo e seu chamado para que sigamos seu exemplo de entrega total, como também refletiram os Padres da Igreja, como Santo Ambrósio, ao afirmar que “o sacrifício de Cristo é o centro da nossa reconciliação com Deus”. Cristo é ao mesmo tempo o sacerdote que oferece e a vítima que é oferecida.
A Encarnação também ilumina o significado da dignidade humana. Se Deus se fez homem, isso significa que cada ser humano carrega em si uma dignidade infinita. O corpo, que muitas vezes desprezamos ou instrumentalizamos, torna-se um templo da presença divina. Como está escrito: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Esse é um aspecto que transforma radicalmente a maneira como enxergamos a nós mesmos, ao próximo e ao mundo.
Na primeira coluna, falamos sobre o sentido da vida como a busca pelo Bem Supremo. Na segunda, identificamos esse Bem como o Deus verdadeiro, revelado na criação e na ordem do
universo. Na terceira, refletimos sobre os atributos divinos que apontam para um Ser transcendente e absolutamente perfeito. Agora, ao abordarmos a União Hipostática e a Encarnação, vemos como esse Deus perfeito não se limita a ser um conceito filosófico ou uma força distante, mas entra na história humana de forma concreta e pessoal.
A Encarnação é o ponto em que a transcendência divina encontra a imanência humana. Deus não é apenas o motor que move o universo, mas o Pai que vem ao encontro de seus filhos perdidos. Essa compreensão nos ajuda a perceber que o sentido da vida não está apenas em conhecer a Deus, mas em nos relacionarmos com Ele como filhos que reconhecem o amor do Pai e respondem a esse amor com entrega e confiança. Como disse Santo Irineu de Lyon: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus.”
A União Hipostática e a Encarnação são mistérios que nos convidam à contemplação. Eles não podem ser totalmente compreendidos pela razão, mas podem ser acolhidos pela fé. Em Jesus Cristo, encontramos a resposta não apenas para as questões filosóficas sobre o sentido da vida, mas também para os anseios mais profundos do coração humano. Ele é o Deus que desce para elevar, o Senhor que serve, o Mestre que ensina com a própria vida. “Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20,29).
Que possamos, à luz desse mistério, aprofundar nossa relação com Deus e com o próximo, vivendo como testemunhas do Verbo que se fez carne e habitou entre nós.
Indicações bibliográficas: LUMEN GENTIUM
Jesus de Nazaré – Joseph Tazinger
A Encarnação do Verbo – Santo Atanásio
Franklin Ricardo, Católico, esposo, pai de quatro filhos, estudante de artes liberais, filosofia e teologia, apaixonado pela cultura latina e pelos grandes clássicos da cultura ocidental; ex-ateu, converso pela graça santificante.