Catolicismo à baiana, devagar, quase parando:
Na próxima semana retornamos com a série catequética, você pode conferir aqui: Restaurando-nos pela graça
Leão XIV: um nome, uma memória, uma missão
Poucos gestos, no início de um pontificado, carregam tanto peso simbólico quanto a escolha do nome papal. Quando o novo Bispo de Roma apareceu pela primeira vez ao povo reunido na Praça de São Pedro e se apresentou como Leão XIV, os olhos do mundo se voltaram imediatamente para a história. Afinal, não se tratava apenas de um nome tradicional — era um nome que trazia à tona dois gigantes do papado: Leão I, o Magno, defensor da ortodoxia cristã e da dignidade romana diante dos bárbaros, e Leão XIII, o profeta da justiça social em tempos de industrialismo e miséria. Mas foi ao citar expressamente a Rerum Novarum — a histórica encíclica de 1891 — que Leão XIV deixou claro o fio condutor de seu pontificado: uma retomada criativa e fiel da Doutrina Social da Igreja diante das angústias do mundo contemporâneo.
Essa escolha não foi uma homenagem vazia nem uma deferência protocolar. Foi uma profissão de fé em meio às “coisas novas” de um século inquieto, uma declaração de guerra contra a indiferença social e espiritual que consome as bases da convivência humana. Ao assumir o nome Leão, o novo Papa recorda que há momentos na história em que é preciso não apenas cuidar do rebanho, mas também defender a cidade santa, enfrentar os invasores de fora e os erros de dentro. Como quem compreende que a caridade pastoral exige também coragem intelectual, Leão XIV indica que seu pontificado não será apenas de ternura, mas também de combate — o combate das ideias, como lembrava Bento XVI em sua carta a Marcello Pera: “A tolerância que renuncia à verdade não é capaz de reconhecer o mal e, portanto, torna-se cúmplice do mal”.
Leão I, o Magno: o pastor firme diante dos impérios
O primeiro Leão a ocupar a Cátedra de Pedro viveu num tempo em que o mundo romano desmoronava. Papa de 440 a 461, Leão Magno enfrentou os desafios de um império em ruínas, de invasões bárbaras que ameaçavam Roma e de heresias que corroíam a unidade da fé. Sua fama histórica, registrada até mesmo por historiadores seculares, é inseparável de um episódio emblemático: o encontro com Átila, o rei dos hunos, em 452. Conta a tradição que Leão, sem exército nem espada, enfrentou Átila apenas com sua dignidade e autoridade espiritual. E o bárbaro, inexplicavelmente, recuou.
Mas Leão foi mais que um diplomata ousado. Ele reafirmou o apostolado petrino, a missão de Al-Habaiyt (cf. Is 22, 18-23), mordomo do Reino de Deus, Vigário de Cristo na Terra, firmando a doutrina católica no Concílio de Calcedônia com sua famosa Tome of Leo, onde afirmou: “Pedro falou pela boca de Leão”. Ao defender a união das naturezas divina e humana em Cristo contra o monofisismo, Leão lembra ao mundo que é a Pedra, a Even haShetiyah sobre a qual a Igreja é fundada.
Ao escolher seu nome, Leão XIV evoca essa coragem doutrinal e pastoral. Vivemos, afinal, num tempo que também conhece seus “hunos”: ideologias niilistas, dissolução cultural, ataques à vida e à família, e poderes que se erguem sem referência à verdade. Um novo Leão é necessário para recordar à Igreja — e ao mundo — que a fé cristã é capaz de confrontar o caos sem ceder à violência, e de manter a unidade sem trair a verdade. Não há verdadeira caridade sem parresía, nem paz autêntica sem confronto com o erro.
Leão XIII: o profeta da justiça social
Se Leão I enfrentou os bárbaros às portas de Roma, Leão XIII enfrentou os monstros invisíveis da modernidade. Foi eleito em 1878, poucos anos após a queda dos Estados Pontifícios, e seu pontificado se estendeu por 25 anos — um dos mais longos da história. Sob sua liderança, a Igreja iniciou uma abertura consciente ao mundo moderno, não por rendição, mas por missão.
Em 1891, Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum, a primeira grande exposição da Doutrina Social da Igreja. Num tempo em que os trabalhadores eram explorados, o capital dominava sem freios e o socialismo ganhava força com promessas utópicas, a Igreja, por meio do Papa, ergueu a voz com clareza surpreendente: o trabalho humano tem dignidade própria; o Estado tem deveres para com os pobres; a propriedade privada tem função social; e a caridade cristã deve ser vivida também nas estruturas da sociedade.
A Rerum Novarum não foi um documento isolado, mas a semente de uma nova tradição doutrinal, que seria desenvolvida por sucessores como Pio XI (Quadragesimo Anno), João XXIII (Mater et Magistra, Pacem in Terris), Paulo VI (Populorum Progressio), João Paulo II (Laborem Exercens, Centesimus Annus), Bento XVI (Caritas in Veritate) e Francisco (Laudato Si’, Fratelli Tuti).
Leão XIII percebeu que os “novos tempos” exigiam uma resposta nova, mas enraizada na tradição. Ele não rompeu com o passado: iluminou-o com uma luz social. E é esse legado que Leão XIV agora abraça com vigor.
Leão XIV e os desafios do nosso tempo
Se Leão XIII respondeu às dores da Revolução Industrial, Leão XIV parece disposto a encarar os fantasmas da era digital, da globalização desigual e das crises civilizacionais. Em sua primeira alocução, ao mencionar a Rerum Novarum como inspiração direta, o novo Papa sinalizou que os temas da justiça social, da dignidade do trabalho e da solidariedade não serão apêndices morais, mas eixo central de seu pontificado.
Vivemos sob o peso de “coisas novas” que desafiam profundamente a antropologia cristã:
O trabalho, que se torna cada vez mais precário, fragmentado, desumanizado por algoritmos e automações.
A ecologia integral, constantemente ameaçada por modelos de produção que tratam a criação como matéria-prima descartável.
A desestruturação familiar e a desvalorização da vida humana em nome de uma falsa liberdade.
As migrações forçadas, frutos de guerras, pobreza e catástrofes climáticas.
As novas formas de idolatria: tecnocracia, narcisismo digital, consumismo indiferente.
Frente a esses desafios, Leão XIV não parece buscar uma acomodação silenciosa. Ao contrário, seu gesto inaugural é um brado profético: a Igreja não deve calar-se diante das injustiças, nem se refugiar num espiritualismo desencarnado. O nome Leão, neste contexto, volta a soar como um chamado à parresía — a franqueza evangélica — que sabe falar a verdade com amor, mas sem medo.
Mais que um nome, Leão XIV parece ter adotado um programa. Um programa que implica risco, pois mexe com estruturas de poder e mentalidades fechadas, mas que é inseparável da missão da Igreja. Como lembrou Bento XVI: “a caridade na verdade é a principal força propulsora do verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (Caritas in Veritate, n. 1).
Um novo rugido de justiça
Na tradição cristã, o leão é ambíguo: pode ser o símbolo do mal que devora (cf. 1Pd 5,8), mas também do Cristo ressuscitado — o Leão da tribo de Judá (cf. Ap 5,5). Ao escolher o nome Leão XIV, o novo Papa parece querer recuperar essa força simbólica: não para se impor com violência, mas para lembrar que a Igreja, quando fiel ao Evangelho, não teme os poderosos, nem se omite diante dos oprimidos.
O gesto do novo Papa é um convite a todos nós: leigos, clérigos, religiosos, intelectuais e trabalhadores. Um convite a redescobrir o vigor da Doutrina Social da Igreja, não como um conjunto de teorias, mas como caminho de vida. A justiça social não é acessório da fé — é expressão concreta da caridade. E a caridade que não se transforma em justiça é incompleta.
Leão XIV se apresenta como um novo rugido em meio ao rumor de um mundo fragmentado — não para nos assustar, mas para nos despertar.
Indicações bibliográficas:
RERUM NOVARUM – Sobre as condições dos operários Economia civil – Luigino Bruni, Stefano Zamagni Introdução ao personalismo – Juan Manoel Burgos
Franklin Ricardo, Católico, esposo, pai de quatro filhos, estudante de artes liberais, filosofia e teologia, apaixonado pela cultura latina e pelos grandes clássicos da cultura ocidental; ex-ateu, converso pela graça santificante.