Catolicismo à baiana, devagar, quase parando: A imagem rachada

 

Catolicismo à baiana, devagar, quase parando.

 

Você pode conferir a série anterior a partir deste link: Do Sentido da vida a autoridade da

Igreja.

 

Este texto é parte de uma nova série:

 

–Por que Jesus fez tudo isso? 2º –A Criação 3º – Os seres espirituais 4ºO Pecado e o Mal: Uma Criação Angélica 5º O que é o mal?” – Uma anatomia da ausência. Pecado: o mal escolhido

 

A imagem rachada

 

“Tu o fizeste por um pouco menor do que os anjos, de glória e honra o coroaste.” (Sl 8,6)

 

Na última coluna, falamos sobre o pecado. Não como um tabu ou um moralismo abstrato, mas como aquilo que de fato nos paralisa — o mal escolhido, o bem recusado, a recusa em ser o que somos diante de Deus. Mas se é verdade que o pecado é real e destrutivo, também é verdade que ele é uma ferida e não uma essência. Ou seja, ele toca o homem, mas não o define. Por isso, antes de seguirmos com temas como redenção, virtude e graça, precisamos olhar de frente para o que fomos criados para ser. Porque ninguém entende o que caiu, se não souber de onde caiu.

 

“Façamos o homem à nossa imagem”

 

Na linguagem da fé católica, há uma dignidade que antecede qualquer mérito: fomos criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Isso não é metáfora. Significa que o homem, diferente de todos os outros seres, é capaz de conhecer, amar e escolher livremente. Possui alma racional, consciência, memória e vontade. Pode transcender a si mesmo, fazer promessas, buscar a verdade, adorar a Deus. Há nele algo que remete ao Criador — como uma pintura remete ao artista, ou como o filho leva traços do pai.

 

Essa imagem é comum a todos. Desde o embrião mais vulnerável até o idoso esquecido, do pecador mais endurecido ao mais virtuoso dos santos: todos trazem essa marca. E é por isso que a Igreja insiste tanto na dignidade da vida humana. Não porque sejamos deuses, mas porque fomos feitos para Deus. E nisso já há algo de sagrado.

 

Estado de justiça original

 

Adão e Eva, os primeiros pais, foram criados em estado de justiça original. Isso significa que, além da natureza humana — corpo e alma, razão e vontade, com seus limites naturais —, eles receberam dons adicionais dados por pura benevolência divina.

 

Esses dons são tradicionalmente divididos assim:

 

•     Dons naturais: tudo aquilo que pertence à natureza humana enquanto tal — por exemplo, o uso da razão, a liberdade, a afetividade, a linguagem, o desejo de verdade e de bem.

 

•     Dons preternaturais: integridade (harmonia entre razão e paixões), impassibilidade (ausência de sofrimento), imortalidade (o corpo não se corromperia), e ciência infusa (conhecimento adequado de Deus e da criação).

 

•     Dons sobrenaturais: a graça santificante, isto é, a participação na própria vida de Deus.

 

 

Esses dons não eram devidos, mas foram concedidos. E o homem, ao recebê-los, podia viver em perfeita harmonia com Deus, consigo mesmo, com o outro e com a criação. O Éden era, portanto, mais que um jardim: era um símbolo da alma em estado de comunhão.

 

Curiosamente, aquilo que Adão possuía por dom gratuito, o cristão é chamado a recuperar pela graça e pelo combate espiritual. A impassibilidade, por exemplo, antecipa o fruto da paz interior. A integridade das paixões ecoa na castidade. A ciência infusa se reflete na sabedoria dos santos. Deus, em Cristo, não nos dá uma natureza nova, mas restitui a antiga ao seu esplendor — e até a supera, pois onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rm 5,20).

 

A queda nos deixou com a natureza ferida

 

Mas essa harmonia foi quebrada. A escolha de Adão e Eva — movida por soberba, desconfiança e desejo de autonomia absoluta — levou à perda dos dons preternaturais e sobrenaturais. A natureza humana permaneceu, mas agora ferida. A tradição chama isso de “concupiscência”: uma inclinação ao mal, uma espécie de desordem interior que nos faz desejar o que fere e rejeitar o que salva.

 

É importante desfazer um erro antigo que ainda ronda até bons cristãos: a ideia de que nossa carne, nosso corpo ou nossos desejos são maus em si. Isso não é cristianismo, é gnosticismo disfarçado. A fé católica proclama com coragem que tudo o que Deus criou é bom (cf. Gn 1,31), inclusive nossa natureza humana. O pecado a desorganizou, mas não a destruiu. Não somos lixo querendo ser santos, mas filhos feridos sendo curados. E por isso mesmo, a redenção é restauração, não substituição.

 

Imagem ferida, semelhança perdida

 

Santo Irineu distingue bem: a imagem permanece após o pecado, mas a semelhança se perde. Em outras palavras, ainda somos imagens de Deus, mas já não lhe somos semelhantes em nossos atos, em nosso interior, em nossa vida moral. A redenção, então, será uma recriação: Cristo, imagem perfeita do Pai (cf. Cl 1,15), vem para restaurar em nós o que foi perdido.

 

O pecado não nos tornou apenas ignorantes e fracos — ele afetou profundamente nossa forma de amar. Os afetos, que antes eram servos da razão, se tornaram senhores rebeldes. Por isso tantas vezes amamos errado, desejamos o que nos destrói, tememos o que deveríamos abraçar. Mas o corpo, mesmo ferido, continua sendo templo em potencial. E a educação dos afetos, pelo Espírito, é parte da cura que Deus opera em nós.

 

Cristo: imagem do Deus invisível

 

Jesus é o novo Adão. Nele, vemos o homem como ele deveria ter sido: obediente, manso, forte, amoroso, livre. Ele assume nossa natureza para curá-la, não para descartá-la. E nos oferece novamente a graça, que nos torna participantes da vida divina. A Igreja, com seus sacramentos, é o lugar onde essa nova vida começa a brotar — lentamente, como uma semente que cresce até transformar o deserto num jardim (cf. Is 35,1). Cristo é a imagem perfeita do Pai, mas também o espelho no qual recuperamos nossa semelhança. Olhar para Ele é começar a nos ver como deveríamos ser: santos, alegres, humildes, inteiros.

 

Não somos apenas pecadores sendo tolerados, mas filhos sendo restaurados. Por isso, a Igreja insiste tanto na dignidade humana: não é uma invenção moderna, mas uma verdade antiga, que nasce do Gênesis e floresce no Evangelho.

 

 

Indicações bibliográficas:

EVANGELIUM VITAE– SOBRE O VALOR E A INVIOLABILIDADE DA VIDA HUMANA O homem eterno – G.K. Chesterton

A abolição do homem – C.S Lewis

O senso Religioso – Pe Luigi Giussani Cidade de Deus Vol 1 e 2 – Santo Agostinho Contra as heresias – São Irineu de Lião

 

Franklin Ricardo, Católico, esposo, pai de quatro filhos, estudante de artes liberais, filosofia e teologia, apaixonado pela cultura latina e pelos grandes clássicos da cultura ocidental; ex-ateu, converso pela graça santificante.

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