Catolicismo à baiana, devagar, quase parando.

 

Catolicismo à baiana, devagar, quase parando.

 

Você pode conferir a série anterior a partir deste link: Do Sentido da vida a autoridade da Igreja. Este texto é parte de uma nova série:

 

Por que Jesus fez tudo isso? 2º A Criação – Os seres espirituais 4º O Pecado e o Mal: Uma Criação Angélica

 

O que é o mal?” – Uma anatomia da ausência Pois o que é o mal senão a privação do bem?” Santo Agostinho, Confissões, Livro VII

 

 

 

 

Na semana passada, caminhamos devagar, quase parando, entre o mistério do pecado e o escândalo do mal, olhando de frente para sua aparência enganadora. Hoje, queremos ir além: entender a fundo o que é o mal. Não apenas enfrentá-lo como algo externo, mas reconhecê-lo em sua raiz — ou melhor, em sua ausência.

 

 

Sim, ausência. Esse é o ponto de partida de um dos maiores pensadores da Cristandade: Santo Agostinho. Após se debater com o dualismo maniqueu — que via o mal como uma força em oposição ao bem — Agostinho descobre, à luz da filosofia neoplatônica e, sobretudo, da graça divina, que o mal não é uma substância, não possui existência própria. Ele é como a escuridão: não algo que se impõe, mas o que resta quando a luz se retira.

 

O mal é a ausência do bem. E o bem, por sua vez, é aquilo que existe conforme sua natureza — é o ser em sua integridade. O silêncio é ausência de som; a escuridão, falta de luz; um buraco, a ausência de massa. Analogamente, o estupro é o ato sexual desprovido de consentimento; a cegueira, a privação da capacidade de ver; a surdez, a falha da audição em cumprir sua finalidade. O mal, em todos os casos, se define pela falta, pela corrupção, pela deformação do bem.

 

Entender isso é reconhecer que o mal não tem consistência própria: ele é parasitário, depende do bem para existir como uma ferida depende da carne viva. Não existe um “mal absoluto”, e o diabo, por mais perverso que seja, não pode ser igualado a Deus — pois ainda carrega o fato de ser. Sua malícia consiste, precisamente, em negar sua própria natureza boa, criada por Deus. Tornar-se mau não é acrescentar algo à existência, mas mutilá-la; é degradar-se, desviar-se, ferir-se.

 

As muitas faces do mal

 

Uma vez compreendido que o mal é sempre uma ausência — uma ferida na ordem do ser — podemos agora olhar para suas múltiplas manifestações no mundo criado. Pois embora o mal não tenha substância própria, ele se mostra de formas diversas, afetando tanto o corpo quanto a alma, tanto o indivíduo quanto a sociedade. A Tradição cristã, iluminada pela razão filosófica e pela luz da Revelação, reconhece algumas distinções fundamentais que nos ajudam a mapear as regiões sombrias onde o bem foi corrompido. São elas: o mal físico, o mal moral, o mal psicológico ou emocional, o mal social e o mal espiritual.

 

  1. O mal físico

É o mais visível e imediato aos nossos sentidos: enfermidades, desastres naturais, limitações corporais, a própria morte. Contudo, mesmo esses males só o são porque tocam a integridade de algo bom — o corpo, a saúde, a vida. Uma perna quebrada é má porque impede o caminhar; a dor é má porque fere a harmonia do organismo. O mal físico, por si, não é fruto direto da culpa pessoal, mas é consequência de uma Criação ferida, marcada pela desordem que o pecado original introduziu (cf. Rm 8,20-22). A natureza geme, dizia São Paulo, aguardando sua redenção.

 

  1. O mal moral

Este é mais profundo, porque nasce da liberdade da criatura racional. É o pecado em sua essência: uma escolha deliberada contra o bem, uma recusa à ordem da verdade e da caridade. Quando o homem peca, ele não apenas sofre

 

 

uma ausência — ele a provoca. A liberdade, que deveria ser instrumento da virtude, se torna arma de destruição. Aqui, o mal não é apenas sentido, mas cometido. E por isso carrega culpa. Ao matar, mentir, trair, corromper, o homem se desfigura a si mesmo, ferindo a imagem de Deus que carrega em sua alma.

 

 

 

  1. O mal psicológico e emocional

Nem todo sofrimento interior vem da culpa. A tristeza, a ansiedade, a depressão, os traumas — todos esses são males que tocam a alma sem que necessariamente envolvam o pecado. São males reais, ainda que invisíveis. Muitas vezes, são frutos de um mundo desordenado, ou consequências do pecado alheio, ou mesmo da fragilidade de nossa condição humana. A Igreja, ao longo dos séculos, sempre cuidou dessas feridas com ternura, vendo nelas um chamado à compaixão, e não ao julgamento. Aqui, o consolo é remédio — e Cristo, o médico das almas, se inclina com especial atenção sobre esses sofrimentos.

 

  1. O mal social

Trata-se das estruturas, sistemas e ambientes que perpetuam injustiças, desigualdades, opressões. Aqui, o mal já não é apenas pessoal, mas coletivo: uma sociedade que normaliza o aborto, a corrupção, a pornografia, a exploração do pobre, está doente. E essa doença atinge a todos, até mesmo os inocentes. O mal social é uma multiplicação do mal moral em escala comunitária. Por isso, a conversão não é apenas individual, mas também cultural, política, institucional. O Reino de Deus não é de natureza terrena, mas é chamado a transfigurar a terra com os valores do Céu.

 

  1. O mal espiritual

O mais grave de todos. É o afastamento de Deus, a privação da graça santificante, a morte da alma. Um homem pode estar são, honesto, respeitado, produtivo, e ainda assim viver sob o peso do pior dos males: a separação do seu Criador. O inferno — que é a ausência total de Deus — não será povoado por monstros, mas por almas que, tendo escolhido a si mesmas no lugar do Amor, terminaram por perder o sentido do próprio ser. A vida de pecado habitual, sem arrependimento, é o caminho silencioso para essa ruína.

 

 

O mistério do mal e a liberdade humana

 

A existência do mal no mundo, mesmo sob o olhar providente de um Deus onipotente e infinitamente bom, permanece como um dos mais profundos enigmas da condição humana. A Revelação cristã não oferece uma resposta meramente racional ao problema do mal — oferece uma Pessoa crucificada. O Filho eterno, consubstancial ao Pai, não desceu ao mundo para teorizar sobre o sofrimento, mas para redimi-lo assumindo-o. Nele, o próprio Deus sofre. Cristo carrega sobre Si o peso do pecado do

 

 

mundo (cf. Is 53,4-6; Hb 2,14-18), experimenta o abandono, o escárnio e a morte, e, precisamente por isso, desvela que a vitória divina sobre o mal não é uma abstração filosófica, mas um ato de amor cruciforme.

 

Santo Agostinho, refletindo sobre a Providência divina, ensina que Deus permite o mal não por impotência, mas por sabedoria: “Deus Todo-Poderoso… jamais permitiria o mal, se não fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar o bem do próprio mal” (Enchiridion, 11). Essa permissão não é conivência, mas espaço dado à liberdade da criatura para que o amor verdadeiro — que só pode nascer da liberdade — se manifeste. A cruz, escândalo para uns e loucura para outros (cf. 1Cor 1,23), torna-se, assim, o trono da soberania divina: nela, a liberdade humana, ainda que revoltada como a de Judas, é ordenada por Deus sem ser violentada. E o plano da salvação não é frustrado, mas confirmado.

 

O mal nos revela a grandeza do bem

 

Em tempos de discursos superficiais sobre “bem” e “mal”, a fé cristã proclama uma verdade esquecida: o mal não é uma substância autônoma, mas uma deficiência do ser, uma privação (privatio boni) daquilo que deveria existir. É a sombra onde a luz se retirou. Por isso, o mal, paradoxalmente, revela a grandeza do bem que lhe falta — pois só é possível perceber a ausência onde algo é devido. A dor denuncia o bem da saúde, a injustiça grita pela justiça, o ódio mostra a ausência do amor.

 

Contudo, essa constatação seria estéril se não conduzisse ao interior. O mal que mais nos afeta não é o que vemos no noticiário, mas o que habita nossa própria alma. O coração humano é um campo de batalha, como alertava Soljenítsin, onde o bem e o mal se entrelaçam. O pecado original nos deixou feridos na razão, debilitados na vontade, inclinados ao erro e ao egoísmo. Somente a graça pode restaurar essa imagem desfigurada. Cristo, o Verbo feito carne, não veio apenas curar feridas sociais ou físicas — veio regenerar o homem desde dentro. Nele, o Bem não é um conceito: é uma Pessoa viva, que nos atrai, transforma e envia como portadores do Reino onde ele ainda não floresceu. O bem verdadeiro é participação no Bem supremo, que é Deus mesmo (cf. CIC 385–412).

 

O mal é real, mas não é eterno

 

A fé cristã não nega o realismo da dor, nem esconde a profundidade do mal. Ao contrário, ela o encara com a firmeza de quem já contempla o fim da história. O mal é real — sim, ele toca o corpo, fere a alma, corrói a sociedade, tenta o espírito. Mas ele não é eterno. Ele não tem a última palavra, porque não tem a primeira. O mal não é criador, apenas parasita. Não tem ser por si, mas depende do bem que distorce. E por isso está condenado ao fracasso.

 

A vitória de Cristo sobre o mal não é apenas promessa futura: é realidade presente, sacramentalmente acessível na vida da Igreja. Cada sacramento é um ato redentor, cada gesto de caridade uma participação no amor que venceu o mundo (cf. Jo 16,33). A Cruz, que parecia derrota, é o triunfo definitivo do Cordeiro. Como canta a liturgia da Vigília Pascal: “Ó feliz culpa, que mereceu tão grande Redentor!” (Exsultet). No fim dos

 

 

tempos, quando Deus for tudo em todos (cf. 1Cor 15,28), o mal será vencido não por aniquilação, mas por superação: a justiça será restaurada, a dor será enxugada, e a verdade será revelada em plenitude.

 

Até lá, cada cristão é chamado a ser luz na escuridão, sal na terra, fermento no mundo (cf. Mt 5,13-16). Não com uma luz própria, mas com a luz de Cristo refletida em sua vida. Como ensinava São João da Cruz, “no entardecer da vida seremos julgados pelo amor”. E é esse amor — gratuito, crucificado, vitorioso — que nos torna testemunhas de que o mal não triunfará.

 

Indiciações bibliográficas:

GAUDIUM ET SPES – SOBRE A IGREJA NO MUNDO ACTUAL

O mal e o pecado; os sete pecados capitais; Os demônios, questões de 1-16 St Tomás de Aquino

O combate ao maligno: a experiência dos exorcistas e o que devemos saber Charles D. Fraune

O problema do mal Pe. A.-D. Sertillanges Confissões Santo Agostinho

Franklin Ricardo, Católico, esposo, pai de quatro filhos, estudante de artes liberais, filosofia e teologia, apaixonado pela cultura latina e pelos grandes clássicos da cultura ocidental; ex-ateu, converso pela graça santificante.

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