Carlos Karoá nos presenteia com: ‘A DÉCADA DO MUNDO’

DIA-A-DIA ENTRETENIMENTO MORRO DO CHAPÉU REGIONAL

Por força da nossa parada, nossos colaboradores guardaram seus trabalhos e já retomaram seus escritos, encaminhando-nos para publicação pelo LRN e o deleite de tantos e tantas que gostam de uma boa leitura.

Inclusive, por conta de todo o trabalho para reconstruir este espaço, estaremos revisitando outras publicações destes amigos escritores.

Assim, segue o texto desta semana:

A DÉCADA DO MUNDO

Na noite de 31 de dezembro de 1959, já haviam passado por mim, 3.650 dias. Ora de olhos fechados quando estava dormindo, ora de olhos abertos quando estava observando o mundo. Mais de olhos abertos, porque dormir pra mim não é prioridade, tenho a eternidade inteirinha pra sonhar, até quando alguém lá de cima, sentir saudades de mim e manifestar o desejo de nesta alma sonhadora, derrear os olhos.

O tic-tac dos minutos em compasso de espera, tinham o ribombar de um trovão nas entranhas do tempo, que em regozijo existencial, contava os segundos finais da década de 50, na ânsia de parir o decênio mais fecundo para a humanidade, desde o começo de vida no planeta Terra.

A década de 60, conhecida como os anos dourados, foi o punhado de anos mais criativos, inventivos, e reveladores de mudanças socioculturais, em toda existência humana, desde que nos conhecemos por gente, vivendo em sociedade.

Com apenas 10 anos vividos, a minha ignorância a respeito de quase tudo, era perdoávelmente justificado, pois de penugem ainda rarefeita, interiorano, vivente de um tempo conhecido como “época do atraso”, das coisas mundanas eu não conhecia quase nada. No final desta noite, neste antológico réveillon, eu deveria estar dormindo, mas certamente no amanhecer do primeiro dia, devo ter percebido o brilho luzente a iluminar a minha testa na manhã radiante do 01 de janeiro de 1960, o maravilhoso alvorecer dos anos que viriam ser, a referência de felicidade coletiva em todos os níveis da vivência humana, sem a distinção de idade ou classe social. A juventude, porém, foi a grande festejada, com a quebra de crendices e proibições. Foi posto à mesa, um novo jeito de se viver a vida. E ela foi vivida com a intensidade que honrosamente merecia. Este texto, nomeia alguns fatos e atos relevantes, consumados na turbulenta vivência de alvíssaras retumbantes dos anos 60.

No começo dos anos de ouro, era eu, apenas um fedelho. Exímio bolagudista, daqueles de meter inveja na gurizada, jogador de pião, daqueles de zunir o danado no ar e aparar na palma da mão, badoguista daqueles de imitar 0 lendário Guilherme Tell, capaz de arrancar uma maçã da cabeça de um incauto companheiro, na primeira esticada das borrachas do badoque. Perambulando por roças e “mangas” alheias, à cata de passarinhos e calangos, armando “fojos e arapucas” na busca de preás, coelhos e teiús, banhando em riachos e açudes, a infância ia indo num esvair natural, se esfumaçando, dando lugar à tão frondosa adolescência. Mais idade, mais experiência e evidentemente um pouquinho mais de conhecimento. Foi nesta época de sandálias de couro, resistentes, mas démodés e desconfortáveis, que surgiram iguais a dádivas dos céus, as adoráveis e delicadas, sandálias japonesas, hoje as banalizadas sandálias havaianas. Foi literalmente um “Deus nos acuda” pra se conseguir botar os pés numa coisinha daquelas. Só quem tinha dinheiro, prestígio e amigo na praça, pra mandar trazer da capital, o mais lindo adereço para os pés, desde o tempo de Cabral. Com a vantagem da uni sexualidade, vendeu mais que bacalhau nos dias da semana Santa. As sandalinhas nas cores verde, azul ou vermelha, eram símbolos de “status” e bom gosto, e se tinha o cuidado de não pisar em terra pra não sujar a parte branca, que sugeria asseio e higiene do usuário sortudo. Tadinhas, hoje a gente não sai às ruas com elas, pois é sinônimo de desleixo e mau gosto. Quem foi Naninha.

E as novas criações iam surgindo como frutos fora de época, causando estranheza e olhos arregalados sempre sempre de aprovação. Um dia, “A Valisère”, indústria de roupas unissex, lançou pro mercado masculino, uma peça leve e delicada, feita de um tecido de fios sintéticos, que não amarrotava, evidentemente não precisava “ passar ferro”, que gerou gratidão e alívios   pra quem tinha esta obrigação. Era o fabuloso Nylon.  Apareceram assim gloriosas, as “camisas volta ao mundo”. O garoto que não tinha uma daquelas, corria o risco de perder a namorada. Era mais um modismo indumentário, de um tempo vaticinado a mudanças e quebra de regras e costumes. Fiz greve de fome até o dia em que uma delas de cor verde claro, veio para parar no cabide frontal, do meu guarda-roupa. Vestir um mimo daquele era um regalo para o corpo, sair às ruas de “volta ao mundo” era um festim permanente. Numa festa, se fazia mais sucesso que o dono da orquestra.

Tiveram, entretanto, um reinado curto. Aos poucos, percebia-se que iam perdendo o brilho e depois de algum tempo, tornavam-se opacas e funestamente sem o encanto de quando estavam na loja. Tal e qual os óculos Ray-ban, Como nuvens passageiras, simplesmente desapareceram.

Em 1964, lá na minha terrinha de chão vermelho, realizava-se de tempos em tempos uma festa religiosa denominada “As missões”. A finalidade naturalmente, além da celebração de ofícios católicos, tipo casamentos, batizados, crismas, primeira comunhão e missas, era recolher fundos pro erário da Diocese.  Vez em quando, algum mascate trazia não sei de onde, alguma coisa que cidade ainda desconhecia. A novidade desta vez, foi o aparecimento de uma caixinha de plástico, comercializada por fotógrafos, onde o freguês aparecia lindamente em cores, tipo artista de Hollywood, destronando de vez, os velhos retratinhos em preto e branco, aqueles que descansavam numa bacia com água em depois ficavam pendurados num cordão pra secagem e nitidez da cara do freguês. O nome do troço era “monóculo”. A moça feia ficava mais bonita, o menino feio parecia um príncipe. Venderam milhares. Tornou-se uma febre familiar.  O comerciante documentava o estoque da loja, o dono do carro se orgulhava mostrando a pintura, o pai de família mostrava a prole generosa e a dona de casa, exibia orgulhosa, a alcova dos amores. Comigo foi diferente, toda namorada que eu tinha, dava um.

Um colóquio mais apimentado com a namorada, no tempo dos gloriosos anos 60, era uma coisa relativamente perigosa. Podia levar os dois pombinhos sonhadores   pro altar ou pra diante de um juiz de paz. A rapaziada morria de desejos, mas morria um pouquinho mais de medo, de dizer um “sim” antes da hora. A frase “comeu casou” era uma sentença extremamente verdadeira.

Dois cientistas americanos, porém, pesquisadores da universidade de Harvard, de nomes John Rock e Gregory Pincus, premiou os apressadinhos com uma drágea milagrosa, as oportunas e cúmplices dos enamorados, as milagrosas pílulas anticoncepcionais. Uma novidade primorosa da década dos anos de ouro e brilhantes. Com a rigorosidade da gravidez sob controle, o amor pode florescer sem o medo atemporal da fertilidade precoce e o tabu da virgindade finalmente, foi pro beleléu. Eu, entretanto, não corria o risco de surpresas, sempre fui santificado.

Alexander Dubcek, ao se tornar líder do partido comunista da antiga Tchecoslováquia, em agosto de 1968, deu início às reformas sociais, conhecidas como a “Primavera de Praga”, onde toda a sociedade civil da hoje Eslováquia, participou ativamente. Professores, advogados, principalmente a classes estudantil, deram o ar de anseio por democracia. A União Soviética não perdoou e Praga foi invadida por quatro nações do bloco russo comunista, o chamado Pacto de Varsóvia. Foram elas, República Popular da Polônia, República Popular da Bulgária, República Húngara e evidentemente a União Soviética. Sufocaram movimento, assassinaram quem era da resistência, mas uma chama de liberdade foi plantada onde antes só existiam grilhões.  Dos atos e fatos marcantes, da década do amor e da sagração da liberdade de expressão, este levante social apesar de severamente golpeado, teve relevância histórica nos anais do mundo, na época que ser feliz, nos custava pouco ou quase nada: Já vinha escrito na certidão de nascimento.

A América sempre foi o Eldorado de aventureiros e sonhadores. Homens que cultivavam a iniciativa pessoal como alavanca para o sucesso. Com esta filosofia encrespada nas cacholas, quatro jovens americanos, juntaram algum dinheiro e resolveram fazer algo grandioso que marcassem suas vidas. Eram eles: Artie Kornfield, Joel Rosenman, Michael Lang e John Roberts. Não tinham mais que 20 anos. Numa cidade de nome Bethel, no estado de New York, um imenso terreno sem urbanização, chamado Woodstock, foi o palco para a realização deste sonho quase impossível. Reunir em um só bocado, a nata da música popular americana, sem distinção de gênero.  Country, folk, romântica e a modinha da vez, o rock and roll. A notícia se espalhou em ondas colossais, como faz uma pedra em espelho de aguas mansas e com a incompreensão beirando um fato desta magnitude, 500 mil almas amorosas, ungidas de música e consciência contemplativa do faça amor não faça a guerra, amantes ferrenhos da filosofia hippie universal, em agosto de 1969, puderam finalmente dar as mãos, pactuar pensamentos e viver o amor que tanto desejavam. Lá estiveram, Janis Joplin, Jimmy Hendrix, Bob Dilan, Joan Baez, The Who, John Philips do The Mamas and The Papas, entre outros gigantes da canção universal. Não é possível fazer paramentos com outras décadas nos seguimentos artísticos que o mundo conheceu.  A década de 60 continua imbatível.

Os anos do decênio iluminado, caminhavam para o fim. Ditosamente já se vislumbrava um continuísmo esperançoso de igualdade, na também gloriosa década de 70, que devagarinho vinha vindo. Esperar com saudades da que ia embora, esperançar-se de positivismo na que estava pra chegar.

Abril de 1961, então no comecinho da década, um cosmonauta russo de nome Iuri Gagarin, foi lançado no espaço com a missão de orbitar a terra. O fez, em pouco mais de hora e meia. Este fato em terras soviéticas, desencadeou uma corrida pela supremacia espacial entre russos e americanos, entre outras picuinhas bilaterais que eles vinham dando rusgas, desde o final da segunda guerra.  O velho Tio Sam, numa postulação cívica jamais vista, reuniu os mais expressivos cérebros pensantes ocidentais, calculistas e físicos geniais nesta briga de cachorro grande. Glorificado, quebrou a faixa de chegada com a conquista da lua em julho de 1969. Foi a chave de ouro pro fechamento da década de tons dourados, a mais fecunda que o mundo conheceu. Foi lá, nesta seara fértil de adoráveis compositores, que a música floresceu em tom maior. O nosso Roberto, em todas as américas, Beatles no universo e a harmonia do mais alto calibre, em todos os corações, amantes das melodias de bom gosto. Hoje a tecnologia nos mostra milagres eletrônicos, abismais pro nosso intelecto de jovens ou senhores de outras eras. Mas, a magia imensurável, intensa e incomparável dos anos 60, é praticamente impossível de se viver outra vez. E eu, orgulhosamente, de mãos postadas e mostrando os dentes, honrosamente estava lá.

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

 

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