Carlos Karoá escreve: ‘São João’

DIA-A-DIA ENTRETENIMENTO MORRO DO CHAPÉU REGIONAL

SÃO JOÃO

 

Em 1953, a Columbia Pictures, lança no mercado cinematográfico mundial, a película “Salomé” estrelada pela maravilhosa atriz Rita Hayworth. No filme, onde ela meneia maliciosamente os quadris, na insinuosa dança dos sete véus, há uma sequência documentando a decapitação do profeta João Batista. O filme, antológico, é belíssimo e

Inesquecível para os cinéfilos de plantão.

A Bíblia conta a história deste homem santo, primo do “Avatar Maior”, em que sua mãe Isabel, acende uma fogueira na montanha perto de onde mora, para avisar a prima Maria, que seu filho João havia nascido. Vem daí talvez, a tradição de se acender fogueiras, nas animadas noites juninas. No filme, em derredor do palácio do rei Herodes, centenas de fogueiras são acesas, em vigília solidária, quando souberam da prisão, do santo homem que anos mais tarde, iria batizar o redentor, seu primo Jesus Cristo.

Quando eu ainda, não sabia contar os dias da semana, logo um guri, a folhinha na parede rezava todos os dias do ano, de primeiro de janeiro a 31 de dezembro. E dizia de forma silenciosa, evidentemente, todos os eventos em que se era preciso   fazer uma roupa nova, para celebrar a data. São João era uma delas. Para se fazer pelo menos uma camisa, o tecido obrigatório era a anarruga, nas cores vermelha azul ou verde. Mas tinha que ser a anarruga, a preferida do povão. Havia um estereótipo estilizado, que todo caipira vestia roupa quadriculada, sabe-se lá porque, está anomalia customizada e adotada nas cidades do interior, desde o tempo que se usava fumo de rolo pra fazer charuto.

Nas ruas sem urbanização, as fogueiras se amiudavam, em quase todos os terreiros e frentes de casa. Lá em casa tinha uma, pequenina mas tinha. Meu pai sempre cuidava, para que não faltasse este zelo pela tradição. Quando a amizade entre amigos, beirava a fraternidade, sempre se saltava sobre os tições em brasa, para se celebrar um compadrio que as vezes, durava para a vida inteira. Não se saltava tições pra fazer comadres com meninas. Meninas usavam saias e podiam sapecar a bunda.

Além do mais, garotas podiam vir a ser uma namoradinha, nada de amizade fraternal com elas. Até hoje tenho compadres e madrinhas, celebradas em fogueiras de são João.

Na minha meninice, de puberdade iluminada nas noites juninas, não se ouvia músicas que não fossem tipificadas e sonorizada por sanfonas. As rádios, mesmo sendo sulistas, onde esta tradição praticamente não existe, sabendo da audiência nordestina, prestigiavam a festa, tocando o “Velho Lua” (Luís Gonzaga) por horas a fio durante as noites dos festejos. Nos espaços onde se podia dançar, os mais desinibidos se exibiam alegremente numa quadrilha improvisada com o prestígio visual de toda sociedade. E pelas ruas, dezenas de moradores de todas as idades, sem distinção, perambulavam pelas vias comuns, à cata de fogueiras feitas de árvores vivas, as chamadas ” fogueiras em pé”, na esperança de abiscoitar um prêmio oferecido pelo dono do fogaréu.

Assistir a muitas delas, de olhos grudados no tronco em chamas, contando os minutos pra hora do tombamento da árvore, quando os corajosos se atiravam sobre seus galhos, tentando arrancar as prendas, firmemente amarradas com fios de arame. Hoje, não se permite mais este folguedo. Matar uma árvore numa pira festiva, não é um ato politicamente correto.

Era permitido pelos pais, os garotos assarem batatas doce nos borralhos das fogueiras. A meninada adorava, pois fugia um pouco da normalidade e tudo que não é comum, é uma tentação pra gurizada. Sempre se sapecava os dedos com as brasas, mas não se ligava pra isto. A gostosura das batatas, valia a pena correr o risco.

Curiosamente, não havia proibição pra se soltar balões. Nada mais emocionante que a soltura de um balão. O ajuntamento de curiosos era imediato. No nosso interior, encravado no noroeste do estado da Bahia, no pé da serra do Gramacho, os balões podiam singrar os céus, nas noites frias do mês de junho. Eu os achava tão lindos, que imaginava que logo, logo estariam beijando as estrelas, me levando pros confins do universo, até onde a minha imaginação juvenil pudesse chegar. E junto com os balões, muita coisa das noites festivas do São João, também foram embora.

As quadrilhas esfumaram-se no desinteresse das novas gerações. As fogueiras, proibidas pela urbanização das ruas, chuvinhas, traques e bombinhas de salão, substituídos por bombas perigosas e ensurdecedoras, as perigosas espadas e vulcões que em vez de encantar, nos remete ao medo. É certo que a evolução em tudo é uma necessidade, mas ainda prefiro continuar com a velha máxima, que não se mexe em time que está ganhando.

Eu queria muito ter de volta o meu São João do chamado “tempo do atraso”.

Queria as mesas fartas de pamonha, canjica, licores, milho assado no fogão ou na fogueira, batatas assadas no borralho, vaguear pelas casas de parentes e amigos à cata de bolinhos de aipim e amendoim cozido, dançar “0lha pro céu meu amor” e a “fogueira tá queimando” citadas aqui como exemplos de bom gosto e capacidade criativa. São canções de Luís Gonzaga, mas haviam outras também que faziam do forró, um empurrãozinho pro arrasta-pé. A essência da felicidade, já diziam os antigos, está nas coisas simples.

As bandinhas de forró foram trocadas por bandonas eletrificadas, música ditas sertanejas, jovem guarda (imagine) MPB, Funk e outras diabruras que dá um nó no meu jeito de ver o mundo.

Licores bem pouquinho, cerveja bem muitão e aos poucos, sorrateiros, o povo que vinha do Sul nos visitar, pra dançar em nossa festa, agora estão vindo pra tocar o que eles querem e botam a gente pra dançar a festa deles, tudo isto devidamente bem remunerados e o pior, dentro da nossa casa. A vontade que me dar, é de acender um tição na bunda deles e mandar todo mundo de volta pra Goiás.

 

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

1 thought on “Carlos Karoá escreve: ‘São João’

  1. Sempre magnífico, Carlos karoá!
    Conhecimento e poesia à flor da pele, sempre com informações precisas e bem humoradas.
    Parabéns, poeta!… Nais uma leitura bastante agradável!

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