Já externei em outras benditas linhas, que Barra do Mendes é a terra dos meus amores. Mas, nenhum destes bem-quereres, tinha a natureza angustiante da paixão, os devaneios tristes ou apaixonantes das desilusões. Eram palpáveis como as mãos de quem me dava o colo, de quem pra mim quando ainda menino, cantava canções de ninar.
Estes meus amores, jamais ficaram de mim, distantes como a visão do Cruzeiro lá da serra e permanecerão grandiosos e misteriosos como as águas do açude que se perdiam das minhas vistas, bem acima dos charcos do carretão.
Destes amores, o primeiro, o Cine União, certamente a mais emblemática das minhas ilusões, foi o caminho de águas doces do saber, do aprendizado cultural, do conhecimento que me chegava em goles colossais, nos dias que por lá andava. Trouxe-me os contos fantasiosos e as histórias do começo do mundo, me fez mais inquisitivo, por prudência mais contrito, conhecedor dos sacrifícios e doações divinas, sabedor das belezas construídas, mas lamentavelmente também dos conflitos do novo e velho mundo. Conheci em detalhes a América do Tio Sam, porque lá é a terra do cinema, o eldorado de quem tem sonhos e exaltar o próprio chão, é coisa que existe até no quintal do vizinho lá de casa.
Bendito seja aquele homem pequenino, o seu Bidão, que me trouxe por alguns contos de réis, as coisas que no dito estrangeiro eu nem sabia que pudessem existir.
O segundo amor, também túrgido e vultoso desde o nascer do Sol até quando ele voltava pras terras do oriente, foi a grandiosa Praça Nestor Coelho. Até os meninos da proibida rua de cima, se rendiam aos seus encantos de amplidão e liberdade. Vinham trocar bolas de gude e jogar pinhões, deixando a marrenta Praça Nova entregue às moscas.
Se nós, visitantes rasteiros, ocupávamos seus espaços desde as calçadas até seu bojo de chão batido, fico a imaginar o tamanho do seu encanto, pois também os viajantes de asas ligeiras, que vinham não sei de onde, se abancavam em suas entranhas. Relembro aqui os saudosos besouros chamados “Von vons” com seus lindos olhos verdes e também azuis, que de tempos em tempos apareciam, sempre que as chuvas lhes traziam as bênçãos da umidade e capacidade de florir. Eles eram nossos companheiros de recreio, contudo, participavam amargamente como prisioneiros. Crianças, em sua inocência, desconhecia o valor da liberdade.
Estas lembranças autobiográficas, em algum lugar da estrada passará, pela ausência materna aos sete anos de idade. A dimensão desta perda atroz e imensurável se dissipará, entretanto em folguedos e na falta de entendimento de quem ainda estava no início da jornada da vida, nos primeiros passos de uma caminhada viva de aventuras.
A orfandade não me trouxe limites pra sorrir, pra traquinar, pra buscar o pote de ouro no final do arco-íris. Fui feliz naquele pedaço de chão apesar de tudo.
Mas, este texto, é dedicado às águas negras do rio do Milagre, onde nasci, em redemoinhos grandiosos com as águas vermelhas do Marrão. O meu adorado açude barramendense.
No início de novembro, era chegado quase que sem falhas climáticas, o período das chuvas no sertão do noroeste da Bahia. Também chamado de tempo do verde ou tempo das trovoadas, podia-se armar uma arapuca ou um fojo do tamanho do céu, que se pegava um tantão de “librina”. Caíam em borbotões colossais, como lágrimas santificadas dos deuses generosos da fertilidade. E Assim, com apenas alguns dias de semeadura dos ares, os umbuzeiros, os puçás da serra, floriam como o riso dos enamorados e os mata-pastos das estradas emergiam como rastilhos verdes, de quem traziam no coração, o fogo sagrado da esperança. E o velho açude, com a servidão das graças divinas, que por meses dormitava em agonia por sede de saudade do Marrão e do Gramacho, aos poucos ia estufando sua grande barriga de fecundidade e fartura.
Igual a quase todos os anos, em 1962 o açude sangrou. E sangrar significava mijar milhões de metros cúbicos de água diariamente, por um vão de uma ponte que ficava no pezinho lá da serra. Quando sangrava, era permitido tomar banho, chafurdar nas beiradas das águas, como se tivesse horas contadas pra acabar. Num milagre que até hoje desconheço, em poucos dias, o lago bendito se tornava um manancial inesgotável da deliciosa proteína da carne branca dos habitantes das águas.
As almas humanas mais vulneráveis acorriam todos os dias, à cata de traíras, iuius, piaus, jundiás, corrós e as graciosas piabas. Milhares delas, douradas feito ouro, se tornavam presas palpáveis, capturadas manualmente enquanto se agrupavam nas poças laterais, numa piracema angustiante, tentando voltar ao bojo das águas negras da grande bacia. Com a correnteza varando o sangradouro, as lavadeiras de roupas também podiam ganhar seu tostão. E elas vinham em bandos ruidosos, para as ilhargas de pedra do pé da serra, que a gente chamava de lajedos. Dezenas delas se misturavam de manhãzinha com suas bacias apinhadas de vestes dos seus senhores ou de senhoras por um dia, num rito de cores e flores, tão bonito de se ver. Os lajedos, de rochas escuras pontuados de arbustos verdes, com o passar das horas iam se adornando de um branco azulado, reluzente, porque o anil em cubinhos era uma prática renitente dos tempos da minha vó.
Vez em quando, uma pecinha colorida tremulava ao vento, destoando da alvura de quase todo o lajeado da serra. Eram vestidinhos de chita, Lençóis de bramante de cobertura de camas, ou toalhas de adorno de mesas de matar a sede de café ou a fome de feijão.
Nos dias de lavação de roupas, a serra, na beirada do rio vivia em festa. Não bastava a beleza do tremular de panos nos recifes rasteiros da barragem, havia nas horas que queriam, o cantarolar das lavadeiras mais ditosas. Eram as modinhas ouvidas nos rádios, ladainhas da igreja, ou mesmo as cantigas de rodas que naquele tempo eram entoadas nas noites de lua cheia. Só em lembrar desta fantasia dos tempos de garoto, lá na praça, com dezenas de moças de mãos dadas cantando ao luar, a saudade dói como bolos de palmatória do meu velho pai. Dolorido relembrar, mas, gostoso reviver, adorável recordar.
Em 1963, o açude não recebeu as águas das enchentes e consequentemente secou quase por inteiro. Nas poças que resistiram ao tempo de estio, milhares de Peixes foram capturados até manualmente, numa abundância de pesca jamais vista em nossa terra. Lembro-me dos curimatãs que foram aditadas como experiência, cresceram e se multiplicaram rapidamente, promovendo um festim para os pescadores. Quando saíam da água, seu dorso dourado e reluzente dava a impressão de serem feitas de ouro. Morri de pena, mas não havia outra coisa pra fazer.
Proseando a respeito do velho bolsão de água, com o amigo Rui Pimentel, ele verbalmente fez um vaticínio triste, afirmando que o açude não sangraria mais, por conta das barragens feitas no São Bento. Discordei. Felizmente o meu amigo não tinha pendurado na algibeira, a gotinha do otimismo e hoje o nosso potão de água tá abarrotadin que dá gosto ver. Jogou pelo sangradouro, milhares de metros cúbicos de molhação irrigando o velho leito ressequido pela aridez de tantos anos. Precisa, porém, ser mais cuidado pelos nossos gestores.
O açude de Barra do Mendes sempre foi uma benção dos céus. Beleza, matador de fome de seus amantes, provedor de alegria de quem lhes arrodeia. Quando piso aquele chão, a primeira visita é para o velho barrigão de mel de água doce.
Se hoje eu derramar em suas beiras, as lágrimas de amor que sinto por este tantão de águas negras, com certeza no ano que vem ele vai sangrar. Vai dizer que o açude dos meus amores, vai estar corriente por séculos seculoriun, eternizado pelo Deus dará, pelo Deus que quer, pelo Deus que pode, pelo Deus que certamente Proverá.
Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.