Carlos Karoá escreve: ‘O SUMIÇO DO MENINO’ Parte 2

O SUMIÇO DO MENINO

Parte 2.

 

Devotei a meu pai um imenso amor. Órfão de mãe, era nele que enxergava o carinho materno que perdi, que já não tinha mais. Um afago, um gesto de doação, fosse de qualquer natureza, avivava a minha autoestima, me fazia sentir amado, acariciado, uma criança ganhadora de mimos. Aos 13 anos me tornei seu escudeiro, ajudante em suas andanças como mascate e isto nos tornou além de pai e filho, grandes amigos das horas de labuta pela vida.

Eu fui um garoto esperto na minha infância. Vivia a questionar as coisas que não entendia e queria por demais saber, o porquê que aquilo era desse ou daquele jeito. Perdi a minha razão maior de viver com apenas sete anos de vida e este fato foi o ensejo maior para as minhas demandas existenciais, inclusive a existência divina. Difícil imaginar, difícil admitir, difícil acreditar.

O cinema de seu Bidão, meu adorado cine União, era o meu amor maior.

Quando as luzes se apagavam e aquele feixe de luz prateado, iluminava a tela na parede, não creio que qualquer garoto da plateia, vivenciasse momentos mais intensos do que eu. Degustava em goles colossais, as ilusões, as fantasias e a espera de ver algo novo, que estava do outro lado do mundo e naquela hora estava chegando para mim.

Na maioria dos meu atos, me enchia de vergonha e culpa se não fosse pelo menos razoável em tudo que fazia, se não fosse o melhor, o pior também não poderia ser. A passividade na minha infância era uma senhora desconhecida para mim. Hoje, por conveniência, as vezes dormimos de mãos dadas. Sempre preferi me arrepender pelo que fiz, do que me arrepender pelo o que deixei de fazer. Apanhava, mas isto fazia parte do risco. Até os anos 60, a convenção punitiva dos filhos pecadores, passava pela palmatória e o currião.  Bem dolorido para as mãos e bundas da garotada. Nos anos 70, felizmente alguns piedosos corações, começaram a questionar os velhos métodos e implantaram castigos pouco menos aflitivos. Ficar sentado num banquinho sem a companhia dos amigos por algum tempo era um deles. Não sei se resolvia alguma coisa, mas pelo menos não doía tanto. Nessa vida tudo tem seu tempo de evolução. Aleluia, aleluia, aleluia!

Mas, comecei a contar uma história de um tempo de semana santa, quando a garotada acompanhava a via sacra nos doze quadros chamados de estações, dentro da igreja e a gente ficava com raiva de Judas. É pra lá que vamos voltar agora.

E assim, meu pai naquele dia nem voltou pra abrir a loja na parte da tarde e inevitavelmente os curiosos começaram a aparecer pra saber notícias. Três para quatro horas da tarde a sala já estava cheia de muita gente tomando café e conjecturando o que poderia ter acontecido comigo. Depois de muitas xícaras de café com sequilho e avoador, de um pode ser que ele foi pra não sei aonde, de um disse me disse sem fim, alguém teve a luminosa ideia de botar uma cabaça com uma vela acesa no açude. A cabaça ia parar bem no lugar onde eu estava afogado. Era só alguém mergulhar e tirar meu corpo já durinho da Silva. Diante das circunstâncias, só podia haver está possibilidade: afogamento nas águas doces do Romão Gramacho.

Meu pai sempre foi um homem equilibrado, cristão, acreditava piamente em Deus, mas certas crendices populares ele tinha um pé atrás.

Não tinha cabeça naquele momento para acreditar em superstições. Estava agoniado, desesperado sem saber o que fazer, ainda agora que o sol já começava a se esconder lá pros lados da serra do marrão. De seis pras sete horas da noite, a praça Nestor Coelho tinha o movimento típico do dia de eleição. Gente espalhada pelas calçadas do velho sobrado, até boa parte do Clube Social Barrense. Um entra e sai lá em casa e meu pai num canto, vencido, agoniado, sem saber que medidas tomar para eu aparecer e dar um alívio pro seu coração que já não suportava mais a angústia pelo sumiço do filho.

De tardezinha, lá no povoado de feira Nova, Maninho botou a última saca de mamona no caminhão e iniciamos o nosso caminho de volta pra casa. Eu contava os minutos, parecia que o tempo tinha parado de correr, mas a luz do sol insistia em sumir devagarinho e trazer a noite que aumentava mais e mais o meu medo de apanhar. E assim, arribamos de Feira Nova no lusco fusco do entardecer, com destino a Barra do Mendes, a sagrada terra dos meus amores.

Pouco mais de oito horas da noite, o caminhão parou na porta de casa do velho Totonho, pai do prefeito, nosso vizinho. Eu desci apressado da carroceria e Maninho me pegou pelo braço e foi me levar em casa. Precisou pedir licença pra entrar porque a sala tava mais lotada que a Fonte Nova em final de campeonato. Grupos de 3 ou 4 pessoas se formavam por todo o ambiente, desde o quintal até a porta da rua, discutindo, opinando o que poderia ter acontecido comigo. A princípio descartaram de vez a possibilidade de eu ter fugido com os turcos, um seleto grupo de pessoas que apareciam por lá de vez em quando, vendendo panelas e tachos de cobre. Eles tinham ido embora há mais de dois meses logo não tinha sido eles.

Também aventaram a possibilidade de eu ter sido raptado por ciganos, mas as únicas pessoas que se tinha visto com roupas enfeitadas, foram duas raparigas da rua da palha, que tinham visto uns modelos num figurino velho, gostaram e mandaram fazer duas saias rendadas. Logo não havia ciganos na região e esta hipótese também foi descartada.

Eu estava feliz por estar em casa, mas tinha uma coisa me dizendo que este episódio não ia acabar bem pro meu lado. Assim que meu pai me viu, foi um bálsamo de água benta no corpo inteiro do velho João. Aí Maninho disse: Olhe João, ele subiu no carro lá na rua hoje de manhã, e eu só fui notar quando tava perto do Barro Alto. Não dava mais pra gente voltar. Mas fique calmo, não aconteceu nada tá tudo bem. Boa noite que eu tô doido pra chegar em casa. Despediu de todo mundo e foi embora.

Com o caso totalmente resolvido, as pessoas foram rareando até o último cidadão dar boa noite e ir embora, deixando apenas meu pai, minha madrasta e uma senhora de Tanquinho de Irecê, que tava passando uns dias lá em casa.

Era terça feira de uma semana santa, e está era a minha esperança de não apanhar.

Mas meu pai tinha passado por maus bocados e ele tinha que descontar estes percalços em alguém e este alguém era eu. Imediatamente se dirigiu para uma parte baixa do telhado e pegou uma peça de madeira que ele guardava para ocasiões especiais. Era uma palmatória.

Doze bolos acompanhados de expressões adjetivas tipo seu safado, seu moleque, seu corno, tu tá pensando o quê, você vai aprender, até o coração ficar mais leve e poder dormir em paz.

Eu ali, submisso, impotente, recebendo um castigo injusto porque eu não tinha culpa pelo acontecido.

Fiquei uns dois dias sem falar com ele.

No terceiro era sexta feira santa e assim que acordei fui correndo lhe pedir a benção. Cheguei de mansinho, lhe estendi a mão e quase numa súplica lhe disse: Bença pai.

Ele me olhou com olhos mansos de amor e compaixão e disse a frase que eu mais gostava de ouvir de meu velho pai;

Deus lhe abençoe meu filho.

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

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