Carlos Karoá escreve: ‘O DONO DA BOLA’

Um dia, e esse luminar do sol ficou bem distante, porque eu tinha 11 pra 12 anos, resolvi ser um empresário da área do futebol. Nesta época, pra viver, eu respirava os ares vermelhos do noroeste do estado da Bahia, na cidade ribeirinha de Barra do Mendes.

O motivo deste destrambelho juvenil foi uma rixa pessoal que meu primo Zinho e eu tínhamos. Isso acontecia sempre que estávamos jogando bola e queríamos ser um melhor que o outro, merecer a chuteira de ouro do saudoso campo de barro, quando na verdade, nem eu nem ele, tínhamos a bendita peça de dar pontapés nas pelotinhas de borracha. Pra ser mais clarinho no assunto, a gente não tinha nada que lembrasse um uniforme esportivo. Era uma camisa do dia a dia, uma calça curta da semana inteira e os pés descalços, nus e desprotegidos, acostumados com os terríveis espinhos de quiabento, tão comuns nos lugares por onde a mulecada andava.

E resolvermos ser, um dono de time de futebol. Era engraçado e triste para quem soubesse destes nossos desejos, porque nem a bola a gente tinha e conscientes disso, a primeira providência a tomar, foi correr lá pros nossos cofrinhos e ver quanto de réis ou Cruzeiros, a gente tinha cada um. Logo logo nos demos conta também, que nem o bendito cofrinho existia.

Nos dias de prova da escola, aquela avaliação pra saber se a gente tinha aprendido alguma coisa, nós levávamos uma folha de papel pautado, que agora eu nem lembro mais, onde é que se comprava. E lembrando delas, resolvemos providenciar as ditosas folhas de papel pautado com os dizeres no cabeçalho:

“Lista pra comprar uma bola”

Cada um pegou a sua e saímos pelas ruas à cata de comerciantes, transeuntes e quem mais tivesse a desdita de passar na nossa frente, pois pedir pra assinar a lista e dar qualquer tostão, vergonha nem eu nem ele, não tínhamos pra estender a mão.

A primeira parada era na venda de seu Paizin de dona Dazinha. Ele tinha a ilusão paternalista de ver o filho Rui, chutando uma bola, dando uns dribles de corpo, fazendo um gol de trivela e correndo pro abraço da galera. E, nessa quimera que só os corações de pai podem sonhar, seu Paizin sempre abria a contagem dos votos com uma cédula amarelinha de 1,00 cruzeiro. Naquele tempo, a maioria dos doadores, contribuíam com 500 réis.

O desejo latente no coração do amoroso marido de dona Dazinha, era ter um craque no time de futebol juvenil barramendense, (naquele tempo o gentílico era barrense) mas o garoto Rui, aquele do nariz escorrendo, que um certo dia meu primo e eu, quisemos enterrar pra imitar um número de circo, não tinha a menor inclinação pra dominar, pentear e cascar um chutaço numa pelota de futebol. Ele não chutava a gorduchinha, ele “rumava” o pé na bendita e se tivesse a sorte de acerta-la, ela não tinha rumo certo, poderia ir pra qualquer lugar, aliás, em acerto entre partes, ele tava no jogo porque o pai contribuía, mas sua performance não valia. O que faltava em Rui em técnica e jeito pra coisa, sobrava em disposição e disciplina tática, corria o tempo inteiro pra cima e pra baixo, na esperança de tocar a bola, mas em vão. O pobrecito parecia que tava ligado na tomada.

Saindo de seu Paizin, o destino era a Praça Nova. Era lá que ficavam os comerciantes, àqueles que poderiam dar um empurrãozinho pra botar os dedos das mãos e dos pés, na tão sonhada bola de borracha. A rolicinha emborrachada que nós queríamos, vinha de fábrica nas cores branca leitosa e vermelho desbotado. Batia no chão e produzia um tinido fino e breve, como num lamento de judiação e sofrimento, de alguém que tava em castigo permanente. A bichinha tinha vida curta, logo logo aparecia um furo que se transformava em rachadura, depois se abria em bandas de tristeza e não servia mais pra nada.

Depois de alguns dias, na condição despudorada de pedintes e suplicantes, o valor amealhado já nos mostrava um Horizonte redondo à nossa espera. Com o dinheiro na capanga, o olho grande era pra Praça Nova, lugar de vendas e miudezas, com o cuidado naturalmente, de escarafunchar o menor preço, porque dinheiro curto é sinônimo de pechincha.

Às vezes, não havia bolas nas prateleiras e o que nos tirava o sono, era ter que esperar os mascates, no dia do ajuntamento coletivo pra comprar e vender. O nosso era e é ainda, na segunda feira.

De posse das bolas, uma pra cada time, em grupinhos separados, pois naquele tempo já havia política partidária, seguíamos com destino ao nosso velho campo de bola, naquele tempo cercado de quiabento e de um barro duro e impiedoso. Cair em disputas de bola ou escorregões era raladuras e mertiolate na certa. Chegamos a jogar também, no leito seco do açude, quando em 1963, não houve chuvas no marrão e no Romão Gramacho da minha terrinha, o doce Milagres.

Nos dias de jogo, perambulávamos pelas casas e ruas à cata dos jogadores. No time de Zinho, lembro-me de Noge irmão de Mizinho, Dó e Pedrinho filhos de Pedro de Nezo, Elvinho que não me lembro da filiação, Luis de dona Mira que hoje é cadeirante e mora em Goiás.

No meu time, sem nenhuma dúvida o melhor (a modéstia foi e sempre será uma das minhas virtudes) lembro-me do egrégio Albertinho de dona Hilda meu eterno amigo irmão Neguinho de cera, Aderval Durães, Nequinho de Manoel Gambá, de Zé de Tenor, porém os outros, infelizmente seus nomes, esfumaram-se nos milhares de noites e dias, evaporados em 6 décadas passadas.

Os nossos embates, quase sempre vespertinos e demorados, nunca eram amistosos. Os jogadores precisavam de estímulos pra arriscar suas canelas e dedões dos pés, minguados de chuteiras e meiões. Não bastavam agradecimentos, ou tapinha nas costas.

Deveríamos sempre ter uma recompensa gourmet no finzinho do jogo, fôssemos vitoriosos ou não. Na volta do campo, cansados, mas alegremente felizes, sentávamos na calçada do Clube Social Barrense, chupando pirulitos comprados na casa de dona Hilda, alguns embarés e balas de mel, do bar de Bia. Se tivesse dinheiro sobrando, o autor do gol da vitória poderia até degustar um docinho de leite, vendido em copinhos americanos. Se preferisse, poderia ser um picolé de coco do bar de seu Bidão.

Espalhados pelo piso da calçada do clube, o cansaço não nos impedia de desfilar em imitações burlescas, os lances de ausência de talento que sempre sempre acontecia. A resenha pós-jogo, era só risadaria e pirraças coletivas. A Barra naqueles dias era um território que nos pertencia. Conhecíamos todos os moradores que por nós passava, beirando a calçada ou lá pelo meio da rua da imensa Praça Nestor Coelho.

Lá longe, atrás da serra do cruzeiro, o azul anilado dos céus, aninhava os meus devaneios, em busca de respostas por coisas que eu não conhecia.  Estas lembranças, buscadas no seio da minha alma, vêm sorrateiras e silenciosas como a névoa em campos de algodão. Ainda um menino, minha ignorância ou pureza dos meus pensamentos, tinha a inocência de Iris verde de esperança e servidão.

É escrevendo e morrendo de saudades.

“Deus dos céus, que na minha infância mereceu de mim a mais cândida venerança, se me queria feliz, porque não me deixou eternamente uma criança, enquanto vida me sobrasse, enquanto a puridade soçobrasse em tudo que o melhor de mim eu pudesse oferecer”. Fez-me um homem, com ansiedades e angústias, com orgulho e vaidades, que eu não queria conhecer.

“Se pudesse amanhecer de novo, abotoando um suspensório de bebê, quem sabe eu nem chorasse, se quisesse ou tivesse, a vontade de te ver”.

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

 

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