Carlos Karoá escreve: ‘O circo’

Vez em quando nos céus de Barra do Mendes, aparecia uma novidade. Novidade nos céus é coisa rara. Tem que ter asas pra vegetar nesta Seara, exceto nuvens, que tem algodão na beira, mas estas só apareciam por lá, em época de chuvas.

Uma bisbilhotice celeste que nos visitava anualmente, era um bando de andorinhas, viajantes do norte do mundo, que fugiam do frio do inverno de lá e vinham catar sementes por aqui, beber a água do açude e namorar na torre da igreja.

Era uma zuadeira dos diabos. Nós, garotos badogueiros, tínhamos profundo respeito por elas e seus maridos, os tesourões. Víamos sentados nos fios da igreja, mas de modo algum lhes apontávamos os bodoques. Havia até uma menina da praça nova, que perambulava pelas cercanias do açude, armada de bodoque e espingarda, matando marrecos e galinhas d’água, mas também não se atrevia a quebrar esta cantilena dos céus.

Rezava a lenda, talvez porque elas ficavam arranchadas na igreja, que eram protegidas de Jesus Cristo, por isto, esse passaporte outorgado por padrinho tão poderoso, lhes dava o salvo conduto de ir e vir, a hora que bem quisesse.

Outro troço alado que aparecia no céu, que gemia tão forte como o trovão de chuva, mas só mostrava os dentes em época de eleição, era o avião de Manoel Cavalcante Novaes. Lindo, ora azul ora vermelho, fazia a gente largar as bolas de gude e correr pro campo de aviação lá na colina, pra ver o danado de perto.

Eu fui uma vez só. Beijei a louça e voltei correndo com medo de meu pai me bater.

Mas havia uma coisa que aparecia pelo chão e era bem mais interessante que os fugazes aviões e andorinhas: Eram os circos. Os circos apareciam geralmente no meio da tarde, num resfolego mecânico de velhos caminhões GMC, tipo o do velho Sinésio. Seu Sinésio, era um senhor que tinha um velho caminhão GMC, morava vizinho ao velho Otacílio Leite, e fazia fretes carregando adobos, telhas ou o que aparecesse.

O caminhão não tinha bons freios e quando precisava parar ele pulava do carro, com um sepo nas mãos, e ia colocando nas rodas pro distinto se aquietar. Ainda me lembro daquele bom homem.

 Vinha na frente, já agora o povo do circo, abrindo os caminhos, sempre uma camionete marca Studebaker, de pintura pedindo ajuda, de pneus lisinhos como bunda de bebê, mas de gente bonita, mulheres de cabelos amarelos, mudando o tom da música de bolero, para um ritmo bem mais animado.

À medida que a novidade era percebida, ia aumentando o número de curiosos. Cidade interiorana era sempre assim.

As tralhas dos circos se esparramavam lá na Praça Nestor Coelho e a gente esquecia de tudo que estava fazendo. Não saía mais de perto.

Eles tinham a mesma importância visual dos parques de diversões, o mesmo peso atrativo do açude sangrando, o mesmo bem querer da garotada.

Depois do aval do secretário Edizio Mendonça, após o pagamento da taxa de ocupação do solo, eles armavam uma arapuca branca, encardida pelo tempo de uso, sem bandeirolas sem nada, mas de uma magia adocicada que nenhum coração adulto poderia compreender.

Naqueles tempos, de economia debaixo dos limites do subdesenvolvimento, o dinheiro era curto, era comum o pano branco da chamada lona do circo, contar com generosos remendos, tapando buracos que facilitavam a visão dos curiosos de plantão.

Este texto, porém, tem a pretensão simplória de contar uma história, curiosa, que aconteceu com as personagens Zinho meu primo, nosso amigo Moreno de Chiquinha de Birro, Rui Pimentel e eu.

Um desses circos arautos da alegria infanto-juvenil teve como atração principal do seu espetáculo, o sepultamento de um homem vivo. Fizeram um buraco no meio do picadeiro, colocaram um rapaz dentro do buraco no início da função, puseram uma lona de caminhão e cobriram com terra.

Horas depois, no fim da apresentação, pra surpresa e final de ansiedade da plateia, o rapaz saiu vivinho da silva. Se ele esteve lá em baixo este tempo inteiro eu não sei, só sei dizer que se eles conseguiram fazer isto, nós, os endiabrados da Barra, também éramos capazes de fazê-lo.

Meu primo Zinho, deveria ter uns 11 anos, eu 10, e Moreno sete ou oito anos. Começamos a matutar onde poderíamos encontrar um local mais propício para a inumação do corpo. Depois de muito procurar, optamos por um monturo que ficava atrás da casa do professor Nozinho.

 Lembro que vizinha dele tinha uma casa velha, desabitada, sem algumas paredes, pois podíamos passar de uma rua para outra. Antes de começarmos a cavar o buraco, tínhamos que encontrar um menino que tivesse a coragem para tamanha façanha, ou fosse tolo o suficiente para não entender o que iria acontecer.

Eu não sei nem explicar, mas a notícia se espalhou entre a molecada e logo começou a aparecer incrédulos, observando o desenrolar da coisa.

O garoto escolhido foi Rui Pimentel. Nesta época ele deveria ter cinco pra seis anos. Rui do velho Paizinho era um menininho branquinho, cabelos castanhos claros, nariz escorrendo por vida. Já tinha até a marquinha da secreção entre o nariz e a boca, que ele limpava com a manga da camisa ou as costas das mãos.

 Andava de pijamas e casaquinho de frio que sua mãe, dona Dazinha, botava pra deixá-lo aquecido, protegido dos frios das manhãs. Não me lembro da indumentária de Rui neste dia. Sei que meu amigo Rui, nesta época, pelo seu tamanho e idade, com absoluta certeza era inocente, puro e besta.

Nós, garotos daquela época, copiávamos tudo que víamos diferente das nossas brincadeiras do cotidiano. Quando chegava o avião, fazíamos aviões de sisal e ficávamos com todos eles estacionados na praça da igreja matriz, ou correndo com eles sobre as nossas cabeças.

Era uma guerra de pura vaidade, cada um querendo fazer um aparelho maior que o do outro garoto. Uma bestagem santificada pela inocência da idade. Brincávamos com eles até cansar.

Quando chegava um parque de diversões, fazíamos balanços para imitar as gangorras e quando o circo sepultou o rapaz, a gente tinha que seguir os trâmites, obedecer aos protocolos, não quebrar a tradição de fazer a cópia de tudo que era diferente, do inusitado, daquilo que os olhos não estavam acostumados a visualizar, entender que fugia da mesmice do dia a dia.

O escavamento era feito com pedaços de flande, um tipo de metal abundante nós monturos da cidade. Nem sei de onde vinham ou para que serviam. Sei que havia flandes por toda parte, por onde a gente andava. À medida que a gente ia cavando o buraco, ia aparecendo menino pra ver o que diabos estava acontecendo por ali. Rui, no alto da sua inocência, continuava sentadinho, só esperando a hora de ser o protagonista do espetáculo, não sabendo ele que poderia ser um drama terrível, uma tragédia interiorana, fruto da puridade infantil de alguns garotos, da candidez efusiva de quem tinha pressa pra descobrir o mundo.

E continuávamos a cavar. Não era muito fácil. Tínhamos as mãos ainda sem a força de um adolescente e o monturo trazia no seu bojo, a diversidade por vezes fétida, do ranso do lixo urbano, produzido e descartado naqueles locais.

Naqueles tempos, quase todo o lixo produzido nas casas, era descartado nós monturos. Dingo, o primeiro gari da cidade, não conseguia fazer muita coisa apenas com seu carrinho de mão e uma sineta de presença. Depois de algum tempo de trabalho, de cavar e tirar a terra do buraco, um de nós entrava pra ver a profundidade, pra avaliar se já tinha espaço pra deitar meu querido amigo Rui, cobrir com uma lona, jogar terra por cima, fazer algumas piruetas em volta do buraco, dizer algumas asneiras que na hora saísse pela boca, receber os aplausos da molecada, tirar Rui todo sujo de terra, talvez sem enxergar direito, porque com certeza, alguma coisa ia cair nos olhos dele.

Foi aí que nós nos lembramos de que não tínhamos uma lona.

Mas isto não era problema para os endiabrados da Barra. Zinho meu primo, lembrou que tia Filhinha, a mãe dele, tinha em casa um cobertor tipo “dorme bem”, um que tinha uma faixa azul ou vermelha nas bordas, e pediu pra esperar que ele ia lá na casa pegar o substituto da bendita lona.

E assim foi feito. Enquanto Zinho saiu correndo pra buscar o cobertor, eu olhava de soslaio para o meu amiguinho Rui. Ali, sentadinho, puro como uma gota de orvalho, inocente como um carneiro que segue o dono pro abate e tão besta quanto eu, que pensava que era o garoto mais sabido do mundo e convenhamos, o que eu era mesmo era um moleque traquinas, inventivo e malino pra dedéu.

Zinho chegou e a gente já estava nos preparativos finas quando percebi bem junto a mim, duas pernas imensas bem perto do meu rosto. Era seu Paizinho, o pai de Rui.

 Na certa tinha ouvido falar na movimentação no monturo e veio saber do que se tratava. Eu fiquei sem fala.

Olhou-me curioso e perguntou o que estava acontecendo ali. Havia em seu semblante, além da curiosidade, um misto de raiva e vontade de dar uns tapas em alguém.

Esse alguém só podia ser eu ou Rui. Comecei logo a pensar num jeito de escapar. Fiquei com medo de ser levado pra casa e levar uma surra de meu pai. Antes mesmo de responder a ele, dei um pulo do buraco e saí doido na carreira feita um rato calunga procurando um beco pra me enfiar.

Os meninos da plateia sumiram como se tivessem um motorzinho de popa e do cobertor de tia Filhinha eu nunca mais tive notícias. Zinho e Moreno eu só fui encontrar uns três dias depois.

Com Rui, tempos depois o encontrei na praça. Quando lhes perguntei o que houve, assim que chegou em casa, a resposta foi na lata: Rapaz levei a maior surra da minha vida.

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

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