A província de São Paulo está em clima de levante permanente nos idos de 1822. A cada semana, notícias de escaramuças de gabinetes chegam à mesa do futuro imperador. Impaciente, fogoso por natureza, o Príncipe Regente brasileiro, resolve ver de perto, quem por todos os diabos não estava rezando pelos seus panfletos de propaganda de governo. E assim, numa decisão impensável e inviável nos dias de hoje, organiza uma jornada de mais de 700 km, do Rio de Janeiro ao hoje progressivo, mas naquele tempo turbulento, estado de São Paulo.
A romaria aventuresca foi a lombos de burros de carga e certamente para as nádegas mais distintas, alcochoadas selas de cavalos.
É início de agosto e sob um sol morno de uma manhã de inverno, ele deixa o conforto aconchegante do palácio da Quinta da Boa Vista, em direção aos ares revolucionários dos seu súditos paulistanos. Como registro histórico, é nesta turnê compassiva, que ele vai conhecer Dona Domitila de Castro e Mello, a futura Marquesa de Santos, mais tarde sua adorada e querida concubina. Depois de 15 dias de cavalgada, chega ao já promissor estado do sudeste brasileiro. E, após o teteretê político para acalmar os ânimos, no dia 5 de setembro numa quinta feira, decide ir a Santos, visitar a família do seu ministro de estado, José Bonifácio de Andrade e Silva. Na volta, quando descansava a beira de um riacho, dois cavaleiros se aproximam em cavalos espumando pelas ventas, como se lhes batessem no lombo, o chicote do diabo. Eram o major Antônio Ramos Cordeiro e o ajudante de ordens Paulo Bregaro, trazendo em seus alforjes, cartas da sua esposa a Princesa Leopoldina e do ilustre brasileiro José Bonifácio.
A leitura destes manuscritos fez o Príncipe Regente tirar da gaveta da escrivaninha e colocar na cabeça, a coroa de imperador do trono brasileiro, deixando em suspiros de alívio, as almas tupiniquins que há muito tempo desejavam um império independente separado de Portugal. Eram meados da tarde de Sete de setembro de 1822.
A data maior da história brasileira, evidentemente se tornou digna e obrigatória nas comemorações cívicas de todo o país. Não sei quando começou oficialmente as demonstrações patrióticas do sete de setembro, portanto o blá blá blá a este respeito, tem que obedecer a critérios dos meus tempos vividos em fanfarras e desfiles colegiais.
No início dos anos 60, pré-adolescente, já batia tambor pra cadenciar as pisadas dos colegas marchantes, todos de nariz pra cima, nos desfiles do dia sete em Barra do Mendes. Onde tinha zuada de alguma coisa eu tava lá. Sempre fui assim. Encutido com o retumbar cativante dos instrumentos musicais.
Em 1965, tinha já no início do ano, sentado praça aqui na terra do frio. As festividades daquele ano foi o meu primeiro desfile de civilidade social na urbe friorenta. Não participei como músico de fanfarra, apesar de já estar nas fileiras da Sociedade Filarmônica Minerva, como clarinetista, com orgulho e honra estufados no peito. Desfilei apenas.
Em 1966, o sete de setembro da terra das flores, enfim, se elevou em belezura. Com ascendência absoluta do Colégio Senhora da Graça na promoção dos festejos, foi o evento que a charanga de tímidos clarins, ganhou status de fanfarra de peso, com a aquisição de duas tubas, um bumbo customizando, várias cornetas, pratos, caixas de repiques e tambores de última geração. Tudo novinho e apaixonante. No dia da entrega dos instrumentos aos interessados em participar do Tum Tum Tum, lembro-me da observação do professor Manoel Pedro: A quem eu entregar o instrumento não pode haver contestação. Estamos entendidos?
Todos naturalmente concordamos.
Apenas por vaidade pessoal, quero nominar alguns abnegados.
Arnaldo Souza e Carlos Karoá receberam as tubas. Numa Pompílio o bumbo gigante, Jomarito Bagano, os pratos, Paulo Dantas uma corneta, os demais colegas, o tempo fez o seu papel capital de excluir devagarinho da minha mente até certo ponto, preciosa.
Ensaiamos por dias, as peças musicais para a exibição pública no dia da pátria.
Nas mãos dos percussionistas os cambitos de precisão, nos bocais de tubas e cornetas, entusiastas tribulações, nas palmas de quem assistiu o que apresentamos, o reconhecimento pela doação de todos nós. O desfile de sete de setembro do Colégio Senhora da Graça, em Morro do Chapéu no ano de 1966, teve aclamação pública merecida e orgulhosamente, eu estava lá.
O feriado da independência em todo o país nos anos de ontem, quando o patriotismo era de pura simbologia, sem os limites do egoísmo cutucando a testa, era uma festa cívica esperada por todos os brasileiros. Nos colégios de cidades grandes, havia uma contenda bairrista, de olho na premiação de opinião pública, indicando a melhor performance. Nas cidades menores, onde só uma agremiação detinha o monopólio de visualização, o esmero era por parte de alunos e professores. Era lindo de se ver.
Fardamento impecável, balizas graciosas se exibindo em ginástica acrobática, desafiando perigos e enchendo os pais e admiradores de orgulho. Dezenas de personagens históricos representados por alunos e alunas, carros alegóricos relembrando fatos, emprestando maior brilhantismo ao esforço devotado dos organizadores da festa. Tudo isto tendo apenas o entusiasmo como motivação, o amor à pátria, o sentido de respeito e devoção a terra onde nasceram.
A participação popular era em toda sua plenitude. Quem não ia à rua ficava na porta de casa, quem não ficava na porta espiava pela janela. O denodo coletivo tinha raízes fincadas no tempo de amor ao chão onde cresceu. Está premissa é verdadeira porque eu vivi, eu senti, fui testemunha viva dos trinados das cornetas, dos tambores e caixas de repiques.
Admito que tudo nesta vida é cíclico, mas há fatos, atos e coisas que a compreensão a respeito demora a chegar. Por que os desfiles cívicos de sete de setembro praticamente desapareceram em cidades que os cultuavam há bastante tempo? O custo para os cofres municipais eram quase inexistentes e a possibilidade de exploração política por parte dos alcaides era extremamente relevante. Então, o que causou tanto desinteresse neste viés de mão dupla, ditos população e organizadores? Sinceramente não sei, logo não arrisco palpites sem rumo, sem prumo ou coisa parecida.
Sei que perdemos um conto de fadas pros olhos da garotada. Banimos do nosso calendário, uma manhã de orgulho pátrio e civilidade, um bolsão de esperança por uma nação mais justa.
Vez em quando ouço um rufar de tambores sinalizando ensaios. Oxalá sejam os maravilhosos desfiles voltando pra casa.
Morro do Chapéu tem uma particularidade singular nesta data.
Tem uma festa religiosa parede e meia com a festa cívica.
A padroeira da cidade tá logo ali, no amanhecer do outro dia. Assim, é passível de um lamento distante, a lembrança das barraquinhas nas ruas durante os ritos religiosos em louvor da protetora santificada da nossa casa.
Era música ao vivo, encontro com amigos, alegria, muito achego fraterno e muito amor no coração. Os desfiles de sete de setembro se foram, talvez carreados na irresponsabilidade das conjurações políticas, na descrença coletiva, no abandono do civismo, nos pátios barulhentos da classe estudantil, infelizmente hoje, de pouco idealismo.
Está ausência de uma arte simples, de puro amadorismo, soa em meu peito como se perdesse alguma coisa prometida. Eu amei intensamente a criatividade estudantil, no tempo que ainda se usava, uma dose moderada da saudosa brilhantina. Bons tempos. Enfim, a mente humana será sempre um lugar de grandes jardins e aspirações voando alto nos céus. Nutrir a alma de zelo e patriotismo vem das raízes legítimas do aconchego do ventre materno.
Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.