A casa de vidro.
Não acho dolorido sentir saudades, e certamente ninguém passa por este estado de espírito com dores no corpo, senão nos prazerosos encontros dos velhos Amigos, estaria proibido falar dos episódios do passado. Mas, nesses encontros as lembranças são bem vindas. Tenho andado por aí, a observar a vida diária da cidade e mentalmente as comparações são inevitáveis. A cidade de hoje tem mais vida, dinamismo, poder econômico, mais opções sociais, mais solidez nas razões de sustentabilidade. A cidade de ontem tinha em cada esquina, porém, a magia dos anos 60. Pujança cultural, mentes em permanentes ebulições criativas e o braço de uma energia cósmica de poder ilimitado que se espalhou mundo afora. Uma simbiose mais que perfeita entre pessoas, lugares e coisas. Era assim que vivíamos aqui na terra do frio, num tempo que a casa de vidro do DERBA, na sua originalidade vítrea, suscitava olhares de enlevo e admiração.
A casinha citada era um conjunto de tirinhas de ferro e retângulos regulares de vidro, distribuídos em toda extensão fronteiriça e partes laterais da construção. Um jardim de flores rasteiras, arbustos medianos enfeitavam o seu derredor e os limites do muro até a entrada principal do órgão. Um mimo da arquitetura simples, de um artista de bom gosto e vanguarda construtiva. Vez em quando o engenheiro chefe residente, fazia festinhas de celebração puramente pessoal. Música de qualidade, docinhos, bebidas, requinte e bom gosto na casinha mais charmosa da cidade. A casinha de vidro do DERBA era uma graciosidade. Hoje reformada, afogou-se em treliças de concreto, sem brilho, cor e linha de criatividade. Perdeu o encanto. Uma pena.
A Biblioteca
A Rua Nicolau Grassi abrigava cultural e orgulhosamente uma biblioteca. Ativa por excelência eram os trinta metros lineares de rua mais populares da cidade, conhecidos como “O Lactário”. A Biblioteca Carneiro Ribeiro, capitaneada por Dona Dália Souza Rocha e dona Ida Garcia de Matos, que se revezavam em turnos diários e noturnos, se tornou um ponto de encontro de toda a comunidade estudantil do Colégio N. S. da Graça. Naturalmente que nem todos iam à cata de informações para os seus trabalhos escolares. Os motivos eram os mais diversos, desde a paquera, o namoro, a busca por livros, pura diversão ou a atração natural que havia num local bem iluminado, cheio de juventude e vida. As bibliotecárias eram extremamente competentes no seu ofício. De maneira simples, era assim o estilo de ambas, atendia a todos com zelo e dedicação. Conheciam cada palmo daquele lugar, cada corredor, cada prateleira, conheciam onde se escondia cada livro e seus respectivos assuntos. Durante a tarde, por razões que desconheço, a frequência estudantil deixava as bibliotecárias sonolentas, às vezes encostadas na porta olhando o movimento das ruas sem nada o que fazer. Mas a noite, quando as luzes deixavam o Lactário mais brilhoso, dezenas de estudantes ocupavam as grandes mesas dos salões corredores e prateleiras num conversei que não combinava em nada com um ambiente de estudo e pesquisa. Ninguém ligava. Poucos reclamavam. A Biblioteca era a lâmpada e nós estudantes as mariposas. Mais ou menos isso.
O Conjunto Columbia.
Outro local que merece citação histórica é a sede do Conjunto Columbia do meu amigo Tota. Antes os ensaios do grupo musical eram feitos na casa do maestro Tota, pertinho do Correio do Sertão. Início de 67 mudou-se para a sede própria frente ao prédio do Grupo Escolar Dias Coelho, proximidades da antiga rua da palha. O local em volta do prédio do Columbia não tinha rastros de urbanização. Era um terreno baldio de vegetação rasteira e mal cuidada. Desconhecia por completo os benefícios da enxada. A linha de atuação do Columbia estacionara nos hits musicais da década de 50. Tocava boleros, sambas, rumbas, não se enveredava pelos caminhos modernos do Rock and Roll. A jovem Guarda ali, batendo nos seus calcanhares, explodindo nas paradas de sucessos, mas o amigo Tota sempre foi resistente ao modernismo. Mas não nos importava esta ausência de padrão, linha de pensamento da moda, tampouco a falta de simetria ou visão de um observador mais perspicaz. Era o conjunto tocando a rumba Siboney de Ernesto Lecuona lançada em 1927, e a galera de infantos cabeludos se requebrando de botinhas, camisas coloridas, calças apertadas e as meninas de minissaias e outros adereços de época, exibindo rostinhos da mais doce felicidade. Meus respeitos, minha homenagem sincera ao grande músico, multi-instrumentista Ulisses Valois, ao saxofonista Paulo Gabriel, ao trompetista Divan Souza, ao baterista João Normando, ao percussionista Zé Garcia e ao grande cantor Ivaldo Garcia companheiro de tantas serenatas. Certa vez dividir a percussão com Zé Garcia nas maracas e bongô, quando fomos tocar em Lapão numa festa do dia dos namorados. Joel Ribeiro,no violão elétrico. Ocorreu um fatos curioso neste dia mas isto é assunto pra outro texto, em outra oportunidade.O conjunto abria as portas aos domingos, lá pelas duas da tarde. A frequência era de meter inveja nos clubes de hoje em dia. Num espaço de 60 ou 70 metros quadrados nós dançávamos agarradinhos até chegar o lusco fusco do entardecer. E o melhor de tudo, não nos custava um centavo. Entrada grátis. Pra mim que adorava dançar, a saudade do Conjunto Columbia é matadeira com certeza.
Os Assustados
A conhecida frase “O senhor está preso” tem significativo peso emocional no coração de quem ouve. Isto é fato. Mas naquela época de intensos desvarios, a frase que mais nos deixava em perplexão momentânea distoava em gênero, número e grau da epígrafe acima citada. Coisa mais gostosa de ouvir pelo menos pra mim, era: Hoje vai ter assustado. E aí, quem ouvia rebatia de imediato: Aonde? Eram famosos os nossos queridos Assustados. Pro velho Caymmi é doce morrer no mar, mas pra nós doce mesmo era os aniversários nas casas dos amigos. O lugar de enlaçar a cintura das meninas pra acompanhar o bamboleio da música, geralmente era na saleta da entrada da casa. O anfitrião exibia orgulhosamente a sua aparelhagem de som sobre tampas de máquinas de costuras ou outra mesinha qualquer. Vez em quando alguém trazia uma rodada de docinhos pra adoçar o bico da garotada. A bebida como sempre para os mais afoitos, era a mistura de Serra Grande com limão e mel ou aquele troço esbranquiçado conhecido como leite de camelo que não gozava da minha preferência. A estrela etílica, porém daquele tempo era sem dúvida o drinks conhecido como Cuba Libre, porque podia ser consumido por garotos e garotas. Tinha e tem esse nome, porque segundo historiadores, um oficial americano, na comemoração na vitória contra os espanhóis que dominavam a Ilha, pediu uma dose de Rum, limão e coca-cola, saudou a todos dizendo: Por uma Cuba Libre. Um dos assustados de alta frequência era o da casa de seu Neném no aniversário de Getúlio Pinheiro. A turma da Jovem Guarda ditava o regime absoluto do ritmo da festa. E a gente dançava, paquerava, namorava, sorvendo em goles colossais a energia das mentes enamorados naquele comecinho de noite. Tinha que começar cedo porque dez horas a luz ia embora e todo mundo procurava o caminho de casa. O amigo Getúlio, a título de recordação, tinha um LP do cantor Nilton Cezar, com as músicas “Verônica” e” Ao mundo vou contar”. Só ele tinha. Onde arranjou não sei. Tocava de meia em meia hora a pedidos dos enamorados. Os Assustados, cuja origem do nome eu desconheço por completo, teve relevância na vida juvenil da galerinha dos anos 60. Namoricos que viraram casamentos podem ser um dos motivos desta adoração pelo dois pra lá dois pra cá bem agarradinho no salão iluminado da nossa fantasiosa imaginação.
Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.
Viajei Carlos,mais uma vez , afinal você tem uma memória excepcional e me deixa sempre inebriado. Abraços