Carlos Karoá escreve: ‘ENCONTRO DE FILARMÔNICAS’

BRASIL DIA-A-DIA ECONOMIA ENTRETENIMENTO MORRO DO CHAPÉU REGIONAL

A primeira vez, tem o peso incisivo da originalidade, o resto é cópia. Da primeira vez, nos lembramos de tudo, ou quase tudo, para beiramos a exatidão.

A primeira vez que vi o mar

A primeira vez do sonhado beijo

A primeira vez daquilo.

A primeira vez da tela do cinema

E dezenas mais que o esquecimento insiste em não ir embora. Sábado passado, de agorinha mesmo, dia 21 de outubro de 2023, foi a minha primeira vez de ver, ouvir e assistir ao encontro de filarmônicas em Morro do Chapéu, a cidade onde me regalo para dormir quase todas as noites. Quando não, é porque estou no mundo, cuidando das minhas burundangas.

Nesta noite de bocais e palhetas em vibrato, o caminho de Santiago estava mais bonito, as constelações do Zodíaco estavam mais brilhantes e me pareceu que uma legião de Querubins engalanados, estava a espiar os repiques e trinados dos anjinhos, porque a música é e será sempre a linguagem dos deuses. A noite foi simplesmente perfeita.

Honrosamente recebemos convidados e o protocolo da hospitalidade recomenda nomina-los.

Filarmônica 09 de maio da cidade de João Dourado

Filarmônica 19 de setembro da cidade de Ibipeba

Filarmônica 04 de janeiro da cidade de Itiúba

A lira Morrense e a aniversariante Minerva, promotora do evento, respira os mesmos ares na hora de dormir, nem precisa nominar, são de casa.

Fui na minha festiva adolescência, músico de filarmônica. Mediano, mas fui. E, por uma preciosidade de fundo de alma, fiquei a observar o desempenho musical dos figurantes, de todas as contendoras, nos instantes preciosos e cuidadosos das suas apresentações.

A lira Morrense, superou com galhardia, a neurastenia natural por estar abrindo a porta dos festejos. A sua história, desde os primeiros passos de vida, é de superação e desafios vencidos, com a determinação e birra herdadas do seu criador. Não houve desvios ou desafinos, fez bonito, cumpriu com  legado de quem oferece alguma coisa para os olhos e ouvidos alheios, estando sujeito a julgamento público. Mereceu os efusivos aplausos que recebeu. Parabenizo a todos, da cozinha bem cadenciada à batuta do jovem e entusiasta maestro. Pelos laços de fraternidade, sua presença na festança é de uma impresendivibilidade cabal.

A convidada da vizinha cidade de João Dourado, elegante em seu paramento negro, também fez a parte que lhes coube, de mostrar dileção por aquilo que se faz, com o juízo sendo cutucado pelo amor. Mesmo sendo ainda, quase uma debutante neste universo apaixonante de notas e compassos. Fez uma homenagem justa e generosa a um músico da terra, o pistonista Silas Monteiro, convidando-o a fazer parte da trupe e ganhou pontos com os gentios, recebendo aplausos barulhentos com o ato. Também me fez um admirador. Sei o que é enfrentar um público sedento de novidades numa competição amigável, desta envergadura. Não tem jeito, sai pelos ares, o que está no coração da molecada musicista. A jovem debutante esteve brilhante. Na próxima jornada, não vai querer ser coadjuvante, vai almejar o protagonismo da festança.

A também noviça, filarmônica Ibipebana, vestiu-se de lírio em detalhes de cordões dourados, com um “cast” juvenil dos mais primorosos. Apresentaram um “dobrado” belíssimo, de um “trio” dos mais harmoniosos. O seu maestro, de uma elegância donairosa, soube serenamente carrear seus pupilos, para uma amostragem precisa, bem executada, impecável. Confesso que me surpreendeu. Melhor assim. Há alguns anos passados, pequenas cidades da nossa carente região, consideravam remotas as possibilidades de se ter uma filarmônica passeando pelas ruas, tendo a frente, filhos e netos nascidos no mesmo chão. A utopia tristonha, cedeu lugar à realidade venturosa. Perceberam que é perfeitamente possível, tornar este sonho factível. Basta determinação e uma vontade férrea de servir aos seus munícipes, por parte dos seus gestores. É preciso antes de tudo, amor à terra. Sem ele, nada se faz. Ibipeba ainda vai surpreender os seus irmanados. Não é só de ouro os cordões do seu uniforme, a garotada também.

Uma outra convidada, a filarmônica 04 de janeiro da cidade de Itiúba, localizada no semiárido nordestino, veio com uma proposta inovadora, abandonando os fardões marciais, para uma exibição cangaceira estilizada, bem assentada na sua trupe de unanimidade juvenil. Simplórios, mas graciosamente belos, estilizados caipiras, mas de elegante jovialidade. A cada intervalo de apresentação, verbetes adocicados e sonhadores da poesia nacional, declamados pelo maestro bonachão. “Poeta dos escravos” Castro Alves, foi um dos contemplados com esta homenagem “Sui generis.

A opção temática apresentada por Itiúba, não foi uma novidade. Eles sempre levam uma surpresa criativa, nas vezes que são convidados a pisar em terras amigas. Os números apresentados, a cada começo de peça, a ovação pública era merecida.

A filarmônica Itiúbana, não veio aqui simplesmente passear. Veio mostrar que a garotada Itiúbana tem dedos ligeiros, quando têm nas mãos um zabumba e uma caixa de repique. Gostei imensamente da mocidade Itiúbana.

Os “dobrados”, obrigatórios para todas as formações, estiveram no topo do bom gosto. Lindos, emocionantes e por mais que se tentem inovações populares do cancioneiro mundial, nas apresentações de filarmônicas, eles permanecem intocáveis, como símbolos indeléveis das corporações marciais. Banda sem dobrados, parece xícara sem asa, tira o gosto do café.

As outras peças ofertadas, tinham naturalmente o crivo pessoal de cada um ouvinte e aí vale a velha máxima que gosto não se discute.

Talvez por ser a música, de bom gosto evidentemente, uma paixão pessoal, gostei de quase tudo que encheu os ares.  Quase tudo, a unanimidade é um cometa que vem de vez em quando, por isso sempre tem uma coisinha que a gente pensa que poderia ser melhor. Mas, o conjunto da obra, por mim foi pintado do mais bonito azul celeste, bem da cor do céu em dias que não vem a chuva.

Os arranjos do repertório do velho Billy Vough, estiveram perfeitos na performance da filarmônica Itiúbana. Lindos demais, amei.

Mas quero dedicar algumas linhas, à promotora do evento, a Sociedade Filarmônica Minerva, em níveis de diretoria e engalanados no seu uniforme. Como disse o maestro Jerry Andrade da banda Ibipebana, fazer música requer amor e coragem. É verdade. Uma celebração desta envergadura, onde se vai recepcionar um número relevante de convidados, requer punhos fortificados.

Não se pode cometer erros. O nome da cidade está no tabuleiro do jogo. A direção da casa, soube cumprir os mandamentos da boa hospitalidade. A cidade, em enlevo de hospedeira, permitiu aos visitantes, deslumbre, alegria e bem-estar, durante todo o tempo que por aqui vaguearam. A filarmônica no seu todo, maestro e pupilos, honraram o esforço da sua diretoria. Garotos e garotas, bocais e palhetas, foram maravilhosos. Responsáveis, competentes, geniais. Cumpriram o dever. Soldados de primeiríssima classe.

Me permitam, um afago merecido.

Um garoto, Minervino, no auge da sua adolescência, pueril ainda na simplicidade dos seus sentimentos, foi o astro maior da película exibida naquela bendita noite. A música não é só harmonia, ritmo e inspiração. É matemática na mais pura limpidez. E o garoto Iago Garcia, este é o seu nome, inebriou a todos com uma performance das mais precisas e admiráveis que tive o prazer de ver e ouvir ao vivo. Calmo, aparentemente pois sei que no âmago da sua alma, um turbilhão lhes acossava os nervos, passou limpo e leve por todos os compassos da polca Anita Garcia, uma composição de Isaías Gonçalves Amy, baiano nascido em Queimadas, com uma serenidade impressionante. As notas, na maioria semínimas, colcheias e semicolcheias, foram dedilhadas com precisão matemática. No tempo, na hora sem nenhum erro. Límpido como as luzes que o iluminavam, naqueles segundos de provação. O conheci pessoalmente. Uma honra.  A ele, os nossos votos de luminescência perene nos seus anos de instrumentista.

Vida longa para o jovem Iago Garcia.

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *