Carlos Karoá Escreve: ‘COSTUMES OU TRADIÇÕES’

DIA-A-DIA ENTRETENIMENTO MORRO DO CHAPÉU REGIONAL

Saudosismo a gente cura, com um vidrinho cheio de boas recordações.

Assim que acordou, o garotinho ainda infanto juvenil, correu os olhos pelas paredes e telhado do quarto onde dormia e se espreguiçou como gato no borralho; o corpo ainda dormitava. Estirou braços e pernas e ato continuo pulou da cama. Vestiu-se da surrada calça curta, camisa de algodão abotoada a suspensórios e célere foi para a cozinha em busca do calor do fogão e da presença dos pais. A primeira coisa a fazer ao levantar -se, naquela época de tradições vivas, era pedir a benção a quem lhes botou no mundo.

Pedir a benção a meus pais, fazia parte do café da manhã, também tava no desjejum. Já bode velho, de barba e cabelos grisalhos, continuei a fazê-lo. Me faltava alguma coisa senão a pedisse, se não cumprisse essa convenção religiosa.

O hábito de se pedir a benção, vem de longe. Na verdade muito longe. No início da sua jornada, segundo a bíblia, o espírito santo pede que Abraão abençoe seu povo. Confesso que não acreditava muito no poder desta frase curtinha, a famosa “bença pai”, mas de alguma maneira me confortava, me sentia vestido e protegido do frio e da chuva. O velho João Karoá ralhava comigo, se por acaso deste simples ato me esquecesse. Estender a mão para alguém e lhes pedir a benção, é um ato de humildade, sugere mansidão. E simples, inofensivo e ter de volta a afirmação “Deus lhe abençoe” tem efeito balsâmico, conforta o espírito igual manto de proteção.

Igual a tantas outras tradições, pedir a benção está se diluindo junto a modernidade. O “bença pai ou bença mãe”, tá perdendo o fôlego pro “bom dia” ou as vezes pro mutismo da má educação. A garotada das mochilas nas costas, carregadinhas de smartphones ou tablets, a chamada “geração Android” está voando nos céus de ondas magnéticas e certamente por isto, o arco-íris dos céus de nosso tempo, já não aparece tão colorido e ilusório, como a nós parecia. Ser abençoados, nos trazia paz de espírito e nos deixava em estado de contrição, ungidos das graças de Deus. Mas hoje, a eletrônica com suas maravilhas, nos faz desacreditar das antigas tradições, já não faz sentido aquilo que não tem um botãozinho pra ser acionado, para comprovar o ato, dirimir dúvidas, como se diz, matar a cobra e mostrar o pau.

BATISMO E CRISMA

A igreja católica instituiu sacramentos a serem observados por seus seguidores e um deles, figurando no topo da lista, é o batismo. Meninos ou meninas, para este dia de bem aventurança, fatiotam-se da alvura do linho e véus, para esta festa dos ritos do espírito. Pais orgulhosos, padrinhos engalanados, amigos festivos e o protagonista na maioria das vezes sem entender coisa nenhuma, pois geralmente está a viver a mais tenra idade. Porém, para a consciência do candidato a este sacramento eucarístico, existe a “Crisma”, para a confirmação voluntária desta vontade. É por volta das adolescências, quando a consciência do bem e do mal já lhes cutuca o juízo, que os jovens são preparados para esta asseveração tão antiga quanto o batismo. Talvez por ser a idade da contestação e teimosia, a crisma tenha se rariado nos templos católicos.  Não é fácil convencer um garoto em início de vida nos tempos de hoje, que os sagrados ritos da eucaristia, pode lhes trazer os limites, nas horas de euforia ou ausência de esperança. Ainda se cumpre esta tradição, mas cada vez mais, distante dos velhos tempos.

SANTOS REIS E LAPINHAS

 

Quando garoto, no tempo das Lapinhas, tinha também as noites dos reiseiros. Homens paramentados de camisas coloridas, chapéus adornados de flores, violas enfeitadas de fitas multicores e uma disposição admirável pra ir à cata de prendas nas casas dos cristãos. Parados nas portas dos escolhidos, depois de cantarem um ladainha de admissão, esperavam a permissão do morador e adentravam nas casas para as suas apresentações. Eram festivas e bastante animadas. Sempre eram recompensados com trocados ou objetos de algum valor. Eram práticos e objetivos, casas sem condições de auferir recompensas, não eram visitadas.

Também as lapinhas, estão perdendo espaço. nas saletas das moradas. São dispendiosas e o trabalho mantenedor beira a exaustão. Estão desaparecendo, virando coisa do passado. Usar um quartinho da casa, para se armar um presépio, é perda de tempo, os visitantes desapareceram.

PENITENTES   E. PAUS DE SEBO

 

Quando os primeiros raios de sol, invadiam as manhãs do sábado de aleluia, não sei quem ou quando se fazia, mas o certo é que um mastro ensebado de gordura animal já estava a postos na praça Nestor Coelho em Barra do Mendes. Lá no topo, um butim generoso para o mais afoito e esperto entre a meninada. Chamado pejorativamente de “pau de sebo”, permanecia fincado na praça até que alguém por fim, conquistasse o prêmio exposto lá no cocoruto e se perdia o interesse pela brincadeira. Horas depois, o mastro era arrancado e tudo voltava à normalidade.

Uma outra tradição, coisa difícil de aceitar ou entender e que me parece, se evaporou de vez foi a jornada dolorosa dos penitentes. Pessoas que se autoflagelavam nas noites da semana santa, numa demonstração de um amor insano a nosso senhor Jesus Cristo. Perambulavam por ruas e becos escuros, munidos de navalhas ou lâminas afiadas amarradas a cordões, açoitando o próprio corpo, numa afirmação de amor cristão dos mais bizarros. Naturalmente por ser um ato de incivilidade, obscurantismo e doloroso sacrifício, a modernidade cuidou de torná-lo sem efeito. Mas, existia sim, ouvia as “matracas” emitirem seus sons característicos nas noites escuras da paixão de Cristo. Neste ritual beirando a brutalidade, seus contendores não gostavam de serem observados, por isto ninguém se atrevia a abrir janelas ou portas para uma furtiva espiada. Temiam retaliações futuras. Eu, menino, morria de medo quando ouvia o blá blá blá das “matracas” varando as madrugadas, testemunhas de tamanha provação.

FINAL

Há muita coisa nos dizendo adeus. Algumas passam sorrateiras, sem que nos importemos, outras causam espanto, outras deixam saudades. A cada dia que passa, aceitamos com naturalidade as mudanças que nos batem à porta.  Afinal as únicas coisas que andam de lado ou dão marcha ré, dizem que são os caranguejos.

 

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

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