Quando o sol, no lusco fusco da tarde tava se amofinando, fraquinho como os gravetos da macambira, eu procurava o caminho de casa, que ficava ali, a uma carreirinha distante da grandiosa Praça Nestor Coelho. Na minha infância, eu quase sempre estava por lá, jogando três topes na bola de gude, jogando pião ou brincando de qualquer uma outra diversão, que a garotada queria. Imaginação e energia nas pernas era coisa que não me faltava, isto evidentemente, com 10 ou 11 anos de idade.
Voltava pra casa correndo, como se o tempo tivesse asas velozes e punições atrozes para quem não lhes devotasse lealdade e assim, depois de um banho de águas preguiçosamente aquecidas, em baldes ou latas de querosene, vestia uma calça curta pendurada em prático e ditoso suspensório e minutos depois, tava batendo palmas na porta de casa do velho Josué Durães. Tava chegando a hora das novelas do “Anjo” e de “Jerônimo, o Herói do Sertão”. Elas riscavam os ares da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, para o regalo de almas de milhões de ouvintes por este Brasilzão afora.
“Melhoral melhoral é melhor e não faz mal”. Esta musiquinha soava ansiosamente doce, nas nossas orelhas.
Era sob o patrocínio financeiro destes comprimidos milagrosos, que curavam desde a dor de cabeça até a topada do dedão do pé e sob os auspícios poderosos da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que nos chegava religiosamente às seis da tarde, a novela do “Anjo”. Um detetive charmoso que desembrulhava mistérios com a ajuda dos parceiros Jarbas, Faísca e Metralha.
O protagonismo do chefe da troupe era do Rádio ator Álvaro de Aguiar. Uma voz anasalada, poderosa e bonita pra ninguém botar defeito.
Na casa do velho Josué Durães, um caboclo de pernas longas e sorriso largo, tinha um rádio cuja marca eu não me lembro mais. Quando se ligava, acendia as imensas válvulas de vidro na sua traseira, demorava um pouquinho para se aquecer e diminuir os chiados e descargas de transmissão, até se poder ouvir com nitidez o que diziam os artistas do folhetim. Na saleta ao pé do rádio, contritos com ouvidos nos chiados e zumbidos, ficavam o velho Josué, os filhos Durães José Carlos e eu, o penetra contumaz. Aderval, o filho mais moço, ainda pixote, dispensava a nossa companhia.
“O Anjo”, uma criação do produtor e novelista Péricles Leal, apareceu em 1948. A inspiração vinha naturalmente no rastro dos detetives americanos, que inundavam com historinhas fantasiosas, o rádio, a TV e revistinhas de mistérios. Mas a estrela maior de todas as noites, de silêncio e orelhas escancaradas, não era o espião “O Anjo” e sim uma quimera genial do talentoso novelista carioca, Moisés Weltman, intitulada carinhosamente “Jerônimo o Herói do Sertão”.
Com suas aventuras Ambientadas nos sertões brasileiros, este grandalhão de tez morena, braços fortes, punhos de aço e pontaria infalível, fez a imaginação de milhões de admiradores pontear os campos de amor ao próximo, da coragem vencendo o medo, da justiça semeada onde antes só existia o dolo e a astúcia permeando o chão. O vozeirão grave e másculo que personificava o justiceiro era do Rádio ator Milton Rangel, um mineiro nascido na cidade de Maria da Fé. Foi ainda menino pro Rio de Janeiro, onde fez a sua vitoriosa carreira de radialista. Faleceu precocemente de um ataque cardíaco, com apenas 45 anos de idade. Uma pena.
A noiva do nosso herói, a mocinha Aninha, era vivificada na voz da rádio atriz Dulce Martins, sendo Tomás Cauê Filho, a voz distoante e jocosa do personagem Moleque Saci.
“Jerônimo, O herói do sertão” uma novela criada para atender ao público masculino, teve aceitação macificada no universo feminino e também no seio da meninada, Tornando desse modo, o maior sucesso radiofônico de todas as regiões brasileiras. Os personagens “O velho Alonso” pai de Aninha e “Maria Homem” mãe de Jerônimo, raramente apareciam. Fica o registro como testemunho escrito.
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade, assim dizia o apóstolo moderno Alziro Zarur. O apelo altruísta desta frase estava estampado no roteiro e textos da novela.
Jerônimo personificava a sede de justiça de todos que lhes devotava meia hora de ouvidos abertos, a cada noite de audição. Suas aventuras tinham o rosto vermelho do chão do nordeste, os charcos pantaneiros da região centro oeste ou as planícies dos pampas do Rio Grande. Não fazia distinção de ambientabilidade, estava no país inteiro.
A produção admirável para uma época de poucos recursos tecnológicos tinha na sonoplastia um atrativo cativante, desde o bater de cascos de um cavalo, até o ranger de uma porta, que chegava a assustar os ouvidos infantis.
Quando o nosso herói estava em apuros, a minha imaginação vagueava nos momentos antes de chegar o sono, procurando um jeito de torna-lo senhor da liberdade. A inocência desconhece os limites da lógica e as alegrias e sofrimentos do personagem eram divididos comigo. Eu ouvia no rádio, mas pensava que aquilo era verdade. Coisa de garoto tabaréu, menino besta mesmo.
O sucesso está quase sempre atrelado a ganhos financeiros e de olho nas possibilidades, não demorou muito para se vislumbrar um novo filão dourado, na exploração do personagem. Assim, em 1957, a Rio Gráfica Editora, lançou um gibi, contando as proezas do paladino.
O desenhista da revistinha se chamava Edmundo Rodrigues e eu o conheci pessoalmente nos anos 80. Morava no dique do tororó. O visitei várias vezes pra trocar ideias.
As novelas radiofônicas acenderam a chama de um veio criativo e lucrativo na televisão brasileira. Municiada dos mais competentes diretores e produtores de arte do país, a TV Globo escolheu o segmento de contar histórias aos pedacinhos e deu um salto gigantesco de qualidade televisiva. Impôs a sua conveniência nos horários das novelas, trouxe para o seio da lavra de contar causos em capítulos, os maiores autores em voga, tais como Dias Gomes, Cassiano Gabus Mendes, Janete Clair, Manoel Carlos, enfim, o sumo coado de quem tinha imaginação, sensibilidade e criatividade artística. Acertou na mosca.
Para mostrar o rosto na telinha, garimpou em teatros e passarelas, as carinhas mais bonitas e talentosas da era. Com uma grade carismática e poderosa, com pouco mais de 10 anos, se tornou a quarta emissora de televisão em todo o mundo. Vaidosamente, merecidamente, passou a ter o codinome de “Vênus Platinada”. Um luxo só.
A cada lançamento de uma novela global, o país se movimentava em torno do início da trama e não a deixava mais. Os atores e atrizes da agora Vênus Platinada, no status invejoso de astros e estrelas, desfrutaram em toda a América do Sul as benesses e prestígio de serem considerados semideuses. Ser um afilhado do velho Roberto Marinho era o sonho de olhos abertos, de todos os artistas da dramaturgia nacional. Sem exceção. E por justiça, o registro gráfico é sincero. Nenhum país do mundo sabia contar uma história dia após dia, com a competência, com a qualidade, com o esmero televisivo que pudesse sequer chegar perto da rede globo de televisão. Era inigualável, admirável, simplesmente única.
As novelas ditavam modas, traziam novidades, mostravam lugares e coisas, contribuíram culturalmente sem nenhuma dúvida, mas mereceram críticas, porque já falei em outras oportunidades, que a unanimidade é um prato que não existe. Pois o mundo gira e no apagar das luzes de cada dia, uma novidade pode estar a nossa espera. E a novidade pra rede Globo de televisão chegou. Bem amarga até. As novelas, antes doiradas com a cor do ouro, passaram a ostentar um elenco sem graça, de um preto e branco desbotado, que não merece mais os discursos boca a boca, de quem gosta de novela.
Perdeu o status de íris da cor do céu, granjeou inimizades e antipatia popular e o staf dourado que mantinha com salários reluzentes, se escafedeu nos recursos barrados do governo federal.
Ficou nos seus corredores e mesas de decisões, a certeza velada que só se pode vomitar brasas incandescentes, quando se tem no ventre, um fogo secular. E fogo secular é coisa que não existe. Até o fogo do sol, por ser uma estrela, um dia vai se apagar.
Enfim, se tirarmos do armário da nossa consciência, críticas adocicadas ou elogios destrambelhados, é bom lembrar, que a vida só terá valido a pena, se tiver existido em nossos corações, um dia, incondicionalmente, festivamente e as vezes até irresponsavelmente, uma paixão.
Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.