Carlos Karoá escreve: ‘ALQUIMIA. DOURADA 2’

BRASIL DIA-A-DIA ENTRETENIMENTO MORRO DO CHAPÉU REGIONAL

ALQUIMIA. DOURADA

Um conto de Carlos Karoá

Parte final

 

Rolf alisou a terra com profundo respeito e temor pelos deuses soturnos da escuridão, alimentando esperanças de retribuição generosa pelo reino dos minerais.  No seu interior, achava que era uma obrigação ele ser recompensado e nesta crença de leve ignorância pelos ritos do ocultismo, cavucou por alguns minutos até chegar na profundidade que cobria sua mão espalmada. A terra estava levemente molhada e não gastou muito tempo nesta labuta. Limpou minuciosamente em derredor do buraco e com contrição respeitosa, desnudou a joia do mais puro ouro, da caixinha de proteção. Ficou por alguns segundos a olhar o céu, como se quisesse perceber alguma divindade a observa-lo. O vento, como elemento noturno, zunia temeroso como prenúncio de flagelo iminente, dava medo estar ali naquela hora. Rolf respirou fundo, não podia recuar. Sacou do bolso um canivete de lâmina retrátil, cabo de madrepérola, um presente que ganhou do pai. Fez uma pequena incisão no braço, apertou o punho e esperou que algumas gotas de sangue semeasse a terra. Os respingos caíram sobre a aliança repousada dentro do pequeno fosso. Era sua oferta pessoal que ele por cisma, achava que o ajudaria na sua relação com os espíritos da mãe natureza. Esperou por alguns momentos, de olhar grudado nos céus, a espera de algum sinal vindo das profundezas abismais do desconhecido e repentinamente os galhos gigantes arborizados do sítio, foram sacudidos por rajadas de vento e respingos de chuva, com folhas de jatobazeiro e jaqueiras voando pros ares, deixando um tapete de esgalhos cobrindo o chão. Longe dali um raio riscou os céus da noite e o ribombar de um trovão aguçou de modo arrepiante, os ouvidos do bruxinho ainda adolescente. Rolf mais uma vez, colocou uma porção de terra até sentir o buraco totalmente coberto. Gruniu alguma coisa que não dava para se ouvir com nitidez, talvez algum mantra de tempos idos, que só ele mesmo trazia nos seus pensamentos. Permaneceu prostrado sobre o local por algum tempo, sentindo um suor frio molhar a camiseta de algodão. De joelhos e cabeça no chão, com o pequeno fosso sob a barriga, oferecia seu corpo em sacrifício, em troca do sonho milenar do homem, de plantar essências e colher matéria bruta. Naquela hora não era um corpo humano que estava ali, era um ser animado, que pro alcance dos seus devaneios, nem a morte temia. Minutos depois se levantou e lentamente tomou o rumo da sua casa, sentindo uma fraqueza estranha invadindo o corpo, como se alguém estivesse lhes cobrando uma dívida por favores praticados. Quando entrou em casa, jogou-se na cama, desfalecendo logo depois de tocar os lençóis. Só lhes restava esperar a resposta dos deuses do chão, todo o ritual de doação e cobrança estava finalizado, o sortilégio fora cumprido.

Quando amanheceu, esperou pacientemente o momento propício para colocar de volta e sem sustos, a caixinha vazia na penteadeira, para que a mãe não sentisse ou desconfiasse com a ausência da joia preciosa. Sem ter a noção exata, de como o fator tempo seria alinhado nas normas ou leis que regem as mandigas, decidiu que a cada 24 horas da iniciação do feitiço, iria visitar o local onde a terra fora profanada para o encantamento. A cada madrugada, religiosamente à meia noite, esperava pacientemente a mãe adormecer, para visitar a cova dos louvores. Munia-se de uma lanterna a pilhas e ia espiar com o coração aos pulos, o local da provação. Sentava nas folhas perto do buraco cavado e agora coberto, passava por um bom tempo sem tirar os olhos da terra semi-revolvida. Por seis dias nada aconteceu, porém na sétima visita noturna, uma surpresa veio tirá-lo da aflição.

Agachado, sentiu um leve tremor no chão, em derredor de onde estava. Era o prenúncio de que algo estava pra acontecer. De repente, um tufo da terra foi jogado prosar e com os olhos rasgados, com o medo a balançar as pernas, assistiu ao mais fascinante espetáculo que um ser humano poderia visualizar e ter ao alcance das mãos: Uma manifestação das forças ocultas que imaginamos existir, mas por razões racionais, é difícil acreditar. Emergindo do fosso, um varão do mais puro cobre, tendo aproximados 11 cm de diâmetro, deixou o jovem mago de queixo caído sem conseguir fechar a boca. Era como uma árvore crescendo de forma lenta e continuada, com ramos surgindo sinuosos como cobras em busca de alguma coisa. Pendurados nos galhos, esferas azuladas e transparentes, com pepitas brilhantes de puríssimo ouro, balançando dentro delas. A visão era quase paralisante, com as esferas luzentes espalhando luz azulada e fosforescente, parecendo um espetáculo lunar, no meio da escuridão. Na medida que iam surgindo novos galhos carregados de esferas, a árvore de cobre ia produzindo um som gutural, como se estivesse fazendo um imenso esforço, para realizar uma obra de tamanha magnitude. Era um assombramento sem comparação neste mundo.  Para quem estava ausente, inconcebível pensar, para quem estava presente, incomparável mensurar.

Depois de vencer o medo, o garoto Rolf resolveu tocar nas esferas iluminadas com as pepitas de ouro a balançar dentro delas. Estavam mornas, o brilho tremeluzente chegava a ofuscar. Tentou arrancar uma delas mas pareciam fincadas nos galhos de cobre, como se houvesse por dentro, encaixes prendendo as joias de uma beleza inebriante. Lindíssimas, valiosíssimas, mas que pareciam estar ali somente para serem admiradas. Entretanto, Rolf não queria somente vê-las, queria também vendê-las e se tornar um garoto rico, poderoso, admirado e desta ambição ele não abriria mão, nem que a vaca tossisse, ficasse gripada ou até morresse. Não haveria contemplações. Correu pra casa em busca de uma ferramenta pra ajudá-lo a quebrar as bolotas azuladas. Encontrou um martelo e voltou às pressas antes que algo estranho acontecesse.  Respirou fundo diante daquela coisa e desferiu uma violenta martelada na pequenina redoma mais próxima. Foi como se algo vivo tivesse sido atingido, aviltado, ferido e imediatamente os sons guturais e os grunhidos, cessaram por inteiro. Rolf desferiu mais outra martelada, mais outra, mais outra e como elas não se quebravam, começou a se tornar violento e por demais impaciente. Começou a proferir palavrões e imprecações que só mesmo ele entendia. A árvore continuava muda e ainda iluminada, parecia não ser uma coisa terrena, uma alienígena que não estava gostando nem um pouco de ser ofendida, de ter o seu dorso golpeado, lanceado numa intolerável violação.

Oferecia, beleza e recebia ingratidão.

Neste desespero de pôr as mãos nas pepitas, algo de terrível aconteceu para ele. A árvore de cobre e esferas de ouro, ao se sentir ameaçada e vilipendiada, começou a submergir lentamente como se fosse um submarino buscando refúgio por medo ou precaução. Do mesmo modo que nasceu, foi afundando no solo e na medida que ia buscando as profundezas, as esferas iam desaparecendo com a sua claridade, deixando o local sombrio, quase em total escuridão. A agonia tomou o garoto por inteiro, na ânsia de atingir as bolinhas ainda no ar, blasfemou impropérios contra a natureza, naquela hora segundo seus pensamentos, sinônimo de podridão. Em suas marteladas havia somentemente ódio e decepção. Seus sonhos de poder e riqueza fácil, estavam literalmente sumindo terra adentro. Martelava o caule, os galhos, as bolotas, arfando, cansado, com lágrimas de angústia molhando todo o rosto. Viu aterrecido, as últimas esferas e toda a árvore de bronze e ouro, desaparecer no chão. O silêncio foi sepulcral. Medonho, como se a morte estivesse sentadinha ali do lado. Os deuses da misericórdia, não estavam de plantão.

Cansado, deprimido, bufando como se tivesse feito um esforço acima das suas forças, Rolf fitava o lugar da cova, agora aplainada como se nada naquele lugar, houvesse acontecido. Tudo tinha voltado, à normalidade como antes sempre estivera, com plantas e solo ainda virgens de urbanização.

Levantou-se e ficou olhando os céus, descrente do que ocorrera a poucos minutos passados. Passou por sua cabeça que tudo poderia ter sido um sonho e começou a beliscar o corpo pra ver se não estava fora do tempo real. Com a luz difusa do céu coalhado de estrelas, dando luminosidade sob as árvores, espiou com o medo estampado no rosto, o antebraço onde havia feito a incisão, para a doação do seu sangue, como sacrifício aos senhores encantados. A cicatriz estava lá. De repente se lembrou da aliança paterna, cuja simbiologia de amor era santificada e começou a cavucar a terra adormecida, desesperado e temeroso que o pior tivesse acontecido. Havia vestígios de sangue misturado com a terra, mas a aliança tinha desaparecido. Começou a pensar o que fazer quando a mãe, percebesse o sumiço da joia e gotas de suor minaram da sua testa, misturando ao orvalhar da noite sofrida. A árvore alienígena, magoada, numa vingança justificada pelo vilipêndio que havia sofrido, com certeza tinha levado a joia preciosa consigo.

 

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

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