Carlos Karoá escreve: ‘ALQUIMIA DOURADA ‘

BRASIL DIA-A-DIA ENTRETENIMENTO MORRO DO CHAPÉU REGIONAL

Parte primeira

 

Rolf Mallmann Jr. Era brasileiro legítimo, da gema como diz o povo. Tinha este nome herdado do pai, um galego das terras germânicas que a curiosidade fez ele aportar por estas bandas de cá, pois queria saber como se vive na linha ou abaixo dos trópicos.  O loiro, era engenheiro de minas e passou pela cidadezinha de Andaluz, no noroeste da Bahia, como uma fagulha de tição aceso, de brilho rápido e chamativo, como brasa vermelho incandescente. Branco leitoso como a maioria do povo alemão, tinha os cabelos dourados como fios de espigas de milho no ponto de sair do pé. Rolf Mallmann tinha vindo pra cidadezinha mineira, cuidar da segurança interna e produção aurífera da mina, a maior fonte de economia de quase toda a região.  Era coisa dos interesses do governo e dos donos do chão, aumentar a produção do cascalho amarelo, deixar felizes administradores e proprietários da terra. Desde 14 de dezembro de 1937, que o decreto-lei número 66, determina que as riquezas do subsolo pertencem à nação. Naturalmente e por justiça, os donos da propriedade também têm o seu quinhão.

O dia a dia do branquelo era de labuta cansativa, mas quando o lusco fusco chegava e completava a sua carga diária de trabalho, era hora de ir embora e a esbórnia era absoluta. Numa noite de folga, talvez num sábado de música e dança, se encantou com as ancas voluptuosas de Dulce Maria e se enrabichou de vez. Nativa da cidadezinha, a cabocla tinha os mais belos olhos verdes que ele já vira, apesar da sua origem, a antiga terra dos vikings, onde não faltavam garotas de olhos da cor das esmeraldas. Ambos jovens, bonitos e felizes, juntaram os trapos, casaram-se e foi desta união de cabelos loiros e pele morena, que veio ao mundo, o adepto de bruxaria, o alquimista Rolf Mallmann Jr. O jovem engenheiro, pai do guri, permaneceu na cidadezinha, até dar um rumo seguro pra empresa mineradora, tempos depois arribou de vez pra capital do estado, tinha trabalho e mais garantias profissionais a sua espera. Apesar da paixão, não quis continuar a viver na cidadezinha do interior do estado.

O garoto cresceu absoluto em suas ações, quase só com o carinho e os cuidados maternos, o pai não demorou a voltar pra cidade grande, pois na pequenina Andaluz, lhes faltava o movimento e o barulho dos centros mais urbanizados.

Prometeu e cumpria religiosamente os deveres de suprir em recursos financeiros, as demandas de vida dos seus dois amores: mãe e filho. Vez em quando aparecia na povoação igual a relâmpagos de chuvas de verão e dias depois ia embora. Matava as saudades do corpo e da alma e logo, logo ia cuidar da sua vida. O garoto crescia com a saúde de potro em pasto farto, sadio e cheio de ideias igual a raposa faminta. Esperto, criativo, todavia aluno em desmazelo permanente. Negligenciava a escola com aparente desprezo. Nenhuma revolta, simplesmente achava perda de tempo, e coisas melhor pra fazer, não lhes faltava. Perambulava quase todo o tempo que lhes sobrava, explorando os segredos do sítio onde morava. A mãe cuidava dos seus afazeres, sem se importar com as esquisitices do jovem adolescente. Com os anos se grudando como visgo na sua cacunda, o jovem Rolf eficientemente já sabia cuidar de si mesmo. Anos passados traz marcas indeléveis, vivas como o fogo, não desaparecem, aquilo que aprendemos, levamos pra vida inteira e o jovem bruxinho a cada dia vivido, se tornava mais desinibido.

Um dia, não se sabe porque, uma inquisição fantasiosa lhes chegou antes do sono: Se tudo que existe tem a sua essência e a terra é capaz de parir a matéria cuja essência foi plantada em seu bojo, porque não plantar a essência do ouro e ver o que a terra era capaz de purgar como fruto? Começou a varrumar a ideia na cachola, com um sorriso matreiro a lhes visitar a boca. Os magos imaginam que feitiços bem feitos, são capazes do inominável, não se pode frear os sortilégios

Em conluio com a mãe natureza, pois o planeta é o senhor de tudo em que podemos tocar. A energia que emana das entranhas da terra, pode forjar um globo completo de ar, água, sedimento e fogo. Regar a essência do ouro, na esperança de colher pepitas na sua forma bruta e original era um devaneio fácil de sonhar, difícil de acreditar, mas para um bruxinho, uma tentação irresistível. A resposta para isto ele ainda não tinha, porém além de inteligência e capacidade de transmutação de matéria, Rolf trazia consigo uma boa dose de loucura. Iria tentar arriscar não lhes custava absurdamente nada. Nem a unha do dedão do pé.

Na adolescência, os nossos desejos pessoais, vão aparecendo como ervas daninhas, brotam sem que se precise regar. E a tendência pessoal do jovem Rolf, a erva daninha que nasceu na sua horta, desde cedo foi a alquimia. Até na hora do sorvo do alimento, misturava sabores e lambia demoradamente os “beiços” no aguardo de um novo paladar. Para ele, na culinária, não havia limites nos anseios de experimentar e Rolf adorava misturar de tudo, além das simples coisas que serviam de alimento. Misturava cores, odores, líquido e sólido e fazia da química, algo divertido ou extremamente sério. Curiosidades latentes de um gênio em desabrocho de vida. Rolf Jr. Era um capricho da natureza humana, quando fosse embora prós céus, seu rastro de diabruras, iria ficar brilhando por aqui, por muito tempo.

No quintal de casa, Rolf tinha um pequeno galpão de tijolos e laje batida como forro.

Sempre estava por lá e era neste esconderijo que ele fazia suas experiências. Só ele tinha acesso. Nem mesmo a mãe andava por lá a xeretar ou mexer nas suas coisas. Era o seu laboratório, onde gastar o tempo era extremamente prazeroso.  Aos poucos, o garoto foi percebendo que no seu espírito, havia algo que transcendia os seus entendimentos. Notava que os passarinhos do sítio, não tinham receio de perambular pelo piso do recinto, ou até mesmo nas prateleiras apinhadas de breguessos. Calangos e lagartos, também não esquivavam dos seus pés. Ele é que tinha o cuidado de não os pisotear. Rolf, na verdade além da alquimia, tinha o sangue da bruxaria correndo nas veias. Certa vez, não achou estranho a presença de uma cobra jararaca, enrodilhada no prato de uma balança de medir quantidades das suas análises.  O inusitado para os outros, para ele era coisa de rotina. Para aquecer ou ferver o que quisesse, tinha herdado do pai, um forno de barro e fole de couro de boi, curtido e raspado, usado para incandescer as brasas. Rústico mas funcionava. Em vasilhames de cobre, fazia experimentos derretendo e misturando essências, jantando tudo em que ele sabia que deveria estar fora da temperatura ambiente. Determinado, não havia ociosidade como companheira, mesmo sendo ele, apenas um garoto em começo de vida.

Os primeiros passos, pro início desta quimera ilusório e bisonha, seria ter às mãos o objeto gerador da essência da oferta, que iria proseio da terra. Uma porção de ouro em forma bruta ou lapidada, como troca do butim que esperava receber em generosos quinhões.

Saiu do local, trancou a porta e foi bisbilhotar em casa, saber por onde andava mãe Dulce Maria. Entrou em casa e a encontrou no labor culinária, pois o meio dia já se avizinhava, já tava na beira das tripas. Bebeu um pouco d’água e avaliou a possibilidade de ir no quarto da mãe, ver se encontrava a aliança do pai, símbolo de amor, agora em provação. A aliança da mãe, permanecia lealmente no dedo anular esquerdo, mas a do pai, era guardada com o preciosismo de um amor inesquecido, apesar da ausência quase por inteiro, do alemão, senhor absoluto do coração da mãe amada. Depositou o copo vagarosamente numa bandeja, olhou de soslaio para a mãe bonitona e rumou pro seu quarto, que por economia de espaço, ficava de porta vizinha do quarto da mãe. Se preparava para abrir a maçaneta do quarto proibido quando ouviu passos logo atrás e mudou de rumo. Entrou no seu quarto quase ao mesmo tempo que a mamãe adentrava no seu cantinho de pregar pestanas e desse modo, sua investida teria que ficar pra outra vez. Deitou em sua cama, atirou as botas no chão e ficou com os olhos grudados no teto, com os pensamentos poluídos de raiva e ansiedade. Tinha que achar um jeito de botar as mãos na aliança de ouro puro do velho Rolf Mallmann.

A noite estava fresca e sem luz de lua, apenas o rebrilhar distante das estrelas, espantava um pouquinho a escuridão. Em descanso após o jantar, a bela Dulce Maria sorvia o prazer de uma brisa suave vinda dos lados do rio. Vez em quando um assanhar das franjas dos seus lindos cabelos negros, a deixava sensualmente mais bonita.  Sentada na porta de casa, fingia olhar as luzes da cidade lá do outro lado da barragem, mas seus pensamentos estavam mesmo era na lourice dos cabelos do amado alemão. Passou a mão nos cabelos em desalinho e resolveu entrar em casa, de volta ao quarto de dormir e sonhar, era hora de fechar pestanas. E assim o fez, levantou-se da espreguiçadeira, fechou portas e janelas e foi pra debaixo das cobertas. O filho observava os seus movimentos disfarçadamente, na primeira oportunidade iria tentar botar as mãos, naquilo que ele achava ser a semente, que faria seus devaneios brotar do chão.

Já passava da meia noite quando o jovem Rolf, decidiu que era hora de assaltar a penteadeira da mãe, na esperança de abiscoitar a aliança de casamento de seu pai,

Precisava urgentemente tê-la em suas mãos.

Abriu vagarosamente a porta do quarto, com o cuidado de não deixar a maçaneta estalar. Perscrutou o ambiente antes de entrar. Estava na penumbra, com o filó em volta da cama balançando suavemente, num leve açoite da brisa que vinha da janela. Dirigiu-se pé ante pé no rumo da penteadeira, ouvindo o ressonar compassado do sono materno. Abriu vagarosamente a primeira gaveta em busca da caixinha de papelão, esconderijo da aliança e vasculhou com cuidado evitando fazer ruídos ou tropeços. Não estava, resolveu tentar a outra gaveta. Via sempre a mãe guardar a joia, na bonita peça encarnada, cujo tipo de madeira, pra ele não tinha a menor importância. Começou a suar frio e sentiu a espinha levemente umedecida. Mais alguns instantes e os dedos tocou em algo que poderia ser a caixinha de papelão endurecido.  Tateou por alguns segundos e percebeu que encontrara o que vieram buscar. Súbito, um ranger de tábuas aguçou mais ainda seus movimentos. A zuadinha esvoaçante de lençóis o deixou em Pânico, a mãe se mexeu nos delírios misteriosos do sono e por momentos o deixou assustado. Permaneceu estatuado, de olhos grudados no filó em volta da cama, vendo a mãe espichar-se nas cobertas, grunir alguma coisa e depois voltar a dormir. Nada aconteceu, foi apenas um susto. Tava chegando a hora do encantamento, a oferta pros deuses da terra, o ouro, já estava em suas mãos.

Quando Rolf saiu do quarto, tremia como se um frio intenso lhes banhasse todo o corpo, a noite era iluminada por estrelas e a penumbra forçada, deixava o jovem em inquietação temporária. Colocou a caixinha com a joia no bolso e rumou para o seu quarto, iria pensar nos primeiros passos a dar, depois do susto que levou. Deitou na cama com os olhos voltados pro teto, o quarto estava ás escuras e lembrou que estava passando da hora de trazer o fogo para o ambiente de magia que estava prestes a iniciar. Preterindo a energia elétrica, acendeu uma vela, o elemento ardente da terra, tinha que estar presente. Apenas com a vela iluminando o recinto já totalmente infectado por uma grossa névoa de magia, permaneceu de olhos fechados por alguns instantes e desceu da cama. Postou os joelhos no chão e começou a recitar baixinho alguns mantras que estavam com ele desde o dia em que nasceu. Conjurou os espíritos que imaginava que naquela hora estavam vagando pelo quarto, clamou pela energia cósmica e ilusório do “Rei Midas” como se ele estivesse prostrado a sua espera e num ato voluntário, apertou com rudeza e violência, o lábio inferior, até sentir o gosto do sangue a invadir a boca, numa oferta macabra do seu corpo, aos deuses da escuridão. Sabia que a partir daquele instante, não poderia mais interromper os ritos de oferta e clamor dos seus desejos, os desígnios dos espíritos do mal ou do bem, tinham normas rígidas a obedecer.  A sorte estava lançada.

 

Conclusão próxima edição

 

 

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

1 thought on “Carlos Karoá escreve: ‘ALQUIMIA DOURADA ‘

  1. Tive que voltar aqui pra conhecer o bruxo, personagem da segunda parte…
    Tenho que ler mais o senhor, Carlos Karoá; gostei desse novo estilo, também!

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