Carlo Karoá escreve: ”O Café da Nice”

BRASIL DIA-A-DIA ENTRETENIMENTO MORRO DO CHAPÉU REGIONAL

‘O Café da Nice’

Em 18 de agosto de 1928, na avenida Rio Branco 174, na cidade do Rio de Janeiro, foi inaugurado o Café Bar conhecido como Café Nice, ponto de encontro de artistas, intelectuais e agentes do show business carioca. Todas as noites, digo todas as noites porque geralmente a classe artística e afins, notadamente são notívagos, se encontravam no Café Nice para diversão e também fechar negócios. Daria pelo menos dois fiapos do meu cabelo para viver uma dessas noites na companhia de Noel Rosa, Pinxiguinha, Nelson Gonçalves Araci de Almeida, Silvio Caldas, Francisco Alves, Orlando Silva, a maior cantora de todos os tempos a paulista de Rio Claro Dalva de Oliveira e outros artistas das noitadas da cidade maravilhosa. Dezenas deles acorriam todas as noites para aquele espaço de cinco portas de frente e dezenas de mesinhas espalhadas pela calçada, numa cópia tupiniquim dos cafés parisienses. Lá em noitadas magistrais, cantores, cantoras, atores, atrizes, jornalistas, diretores teatrais, contrarregras, locutores radiofônicos, novelistas, dubladores, toda essa gente com profissão ligada performances artísticas, ofereciam seus serviços a contratantes devidamente autorizados. Evidentemente que nem só de artistas era composta a freguesia do Café Nice. Ele abria as portas o dia inteiro, varando pela madrugada até o sol raiar. Quando eu cheguei aqui no Morro, em janeiro de 1965, também encontrei um pontinho comercial que tinha quase as mesmas características do glorioso café carioca. Era o Café de Eunice, lanchonete noturna onde também se fechava acordos naturalmente bem menos vultosos que o café bar da cidade do Cristo Redentor. O endereço era rua Nicolau Grassi bem em frente ao antigo Lactário. Como se dizia, não tinha errada. No café de Eunice, os acertos eram de outra natureza. Como quase a totalidade dos vezeiros noturnos era composta por estudantes,  as conversas giravam  sempre e naturalmente em torno do universo estudantil tipo, Vou pegar o caderno emprestado, Vou copiar os deveres de geografia, Passar na biblioteca na parte da tarde, ou Ir mais cedo tomar banho no poço da geladeira pra dar tempo passar na Serra pra pegar Cambuí. Tinha também a sessão dos fuxicos tipo: Fulano me disse que deu um beijo em não sei quem, mas ela não gostou e deu um tapa na cara dele. Também havia o lado bom, que era quando ele roubava um beijo, ela gostava e pedia outro. Eu era danado pra esse tipo de coisa.  Não se consumia bebida alcoólica no Café de Eunice. O nome da lojinha justificava os produtos que ela vendia. Era café preto ou com leite, preços naturalmente diferenciados, sequilhos, aviadores fatias generosas de bolo comum, bolo de milho, bolo de aipim, brevidades em forminhas redondas e outros docinhos do cardápio de lanches comum em todo lugar.

O ambiente era bastante acolhedor, porém não tinha assentos suficientes para todo mundo e alguns se arrumavam como podiam pra descansar as pernas. Esse negócio de dar o lugar aos mais velhos ainda não existia por lá. Quem chegava cedo sentava, quem chegava tarde tinha que se virar, era assim que funcionava. Como a luz elétrica já tinha ido embora, Eunice usava candeeiros e lamparinas a querosene pra deixar o cafofo mais aquecido e acolhedor. A luz tremeluzente dos lampiões, amareladas por natureza, nos deixava em tons doirados, como se de ouro, lambuzados fossemos.

Guardando as devidas proporções, o Café Nice do Rio de Janeiro e o Café de Eunice em Morro do Chapéu, tinham a mesma importância sócia, cultural econômica e lúdica, se medíssemos os níveis de felicidade que eles proporcionavam aos seus frequentadores. O Café da nossa amiga era um clube do bolinha, mulher não frequentava. O motivo deste xenofobismo feminino era a ausência crucial da luz elétrica. A gente só ia pra lojinha, depois que a luz se apagava e nesse horário às moçoilas da cidade já estavam em casa de shortinho e camisola, se preparando pra dormir. Eunice era um ser humano que muito eu admirava. Honesta, trabalhadora, generosa, de olho na higiene do lugar, simpática e dona de uma coisa que só as pessoas especiais têm. Carisma. Carisma a mãos cheias. Famosa por seus arroubos de falta de afabilidade. Em nenhum de nós inspirava antipatia. Ao contrário. Ríamos quando propositalmente a provocávamos e ouvíamos dela pérolas de amabilidade como: Vai tomar café na sua casa; Vai buscar açúcar na casa da sua avó; Você vem aqui porque não têm vergonha; Não lhe chamei aqui, você porque quer e por aí vai. Ela dizia impropérios da boca pra fora e a gente os absorvia da boca pra dentro. Não tinha mesinhas ou outros luxos de agora. A xícara ficava no colo e os bolinhos nas mãos. Vez em quando ia ao balcão e pegava outro. O número de clientes era um tantão. Difícil encontrar um estudante daquela época que não tenha passado por lá. Ate o Sargento Fernandes, nosso colega de sala, quase toda a noite tava por lá contando lorotas e rindo com a mão tapando a boca, para esconder a ausência de dois dentinhos na frente do poço de mentiras. A gente não ia todos as noites pro Café de Eunice. Dava vontade de ir, mas o dinheiro era regrado. Lembro os nomes de um monte de frequentadores: Tertuliano Fernandes, Wilson Bronqueta, Laércio e Raimundo Alcides, Nilton e Chicão de Lauro, Getúlio Pinheiro, Otaviano Gonçalves, José Marques, Arnaldo de Dominguinhos, Calate e Zeca de Alaíde, Jairo de seu Preto, Tamar Monteiro, Rui e o irmão Djalma, Divan Souza, Antônio Raimundo, Reinaldo Grilo, Rafael e Guimerme Vasconcellos, Jurinha, Lourinho, um monte de gente que não dá nominar por falta de espaço. Vez em quando seu Jorge Homero aparecia por lá protegido do frio por uma grossa capa colonial. Os bebuns da noite, Nego Fiinho, Arquimedes e Garaiada também davam o ar da graça, tentando serrar uma xícara de café quente pra tapiar o frio que não dava tréguas. Naquela hora da noite não havia na cidade lugar mais aconchegante. Hoje há uma aposta parecida em nossa cidade. Os tempos são outros e a loja CAROL CAFÉ, vem com uma proposta de especialidade e o selinho mágico da palavra CHIC. Não se baseia na sedução espontânea de alguém que abre um empreendimento espera os ventos da sorte lhes bater à porta. Foi projetada pra ser um sucesso.

Local devidamente escolhido, analisado, iluminação atraente aos olhos do visitante, produtos de altíssima qualidade e um atendimento que deve nortear quem atende pessoas dos mais variados vetores de personalidade. Esperamos que o apreço da clientela pelo Carol Café seja o mesmo que nós tínhamos pelo café da nossa amiga Eunice Rosa Dourado. Em dois ambientes distintos, onde o amadorismo, a singeleza e o carisma tiraram nota 10, da mesma forma o profissionalismo, o requinte e a garra empreendedora certamente alcançará o topo da hierarquia do mundo dos negócios.

Tudo é válido naturalmente se observando os limites entre o luxo e a simplicidade. Entre ser pequeno por opção ou ser grande por esforço e competência. Diz o ditado que quem procura acha, diz a citação que quando o jogo acaba, o peão e o rei vão pra mesma caixa.

 

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

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