Carlos Karoá: ‘O Trator Teimoso’

BRASIL DIA-A-DIA ENTRETENIMENTO MORRO DO CHAPÉU REGIONAL

No finalzinho da década de 60, aportaram lá pras bandas das terras frias de Morro do Chapéu, dois rapazes de origem portuguesa. Homens simples, trabalhadores, logo, logo granjearam a amizade dos gentios, vez que Morro do Chapéu cultuava a política da hospitalidade e da boa vizinhança. seus nomes: Ailton e Guilherme Cavalheiro de Paiva. Ficaram conhecidos na cidade como “os portugueses”. Nenhum deles possuíam requisitos para participar de um concurso de beleza mas o tal Ailton se mostrou sabido pra dedéu. Conseguiu abiscoitar pra namoro e mais tarde levar às portas do altar, a jovem Valnizete Bagano, loira, olhos verdes, corpo a lá Marta Rocha, simplesmente a garota mais bonita da cidade. Um pitéu.

Pra encher diariamente os pratos de feijão arroz e carne, os irmãos portugueses trabalhavam a terra, mais precisamente fazendo locação de máquinas agrícolas, arando, gradeando, semeando, enfim fazendo com suas máquinas o que pedia a roça do cliente.

Pra isso eles tinham um trator de nome TD-9 Internacional. A operação era simples: trator trabalhando, dinheiro no bolso. Trator enguiçado prejuízo na certa. E um dia TD-9 cismou de não mais trabalhar, o motor tava indo prás cucuias. Trator parado, dinheiro diminuindo e o prejuízo crescendo, a preocupação começou a passear nas cabecinhas lusitanas dos irmãos d’alem mar. fazer o que? Pra onde ir? O que é que esse bicho tem? Até que chegou aos ouvidos do Ailton, que lá pras bandas de Mundo Novo a prefeitura mantinha enclausurado numa saleta, embrulhado com lonas e cobertores dorme bem melados de óleo diesel, um TD-9 Internacional, motor novinho igualzinho ao deles, mas que não podia trabalhar porque deu um sério problema com as grades do arado. O português viu aí a oportunidade de comer carne assada com farofa com um tempero bem mais elaborado.

No outro dia cedinho foi logo visitar o prefeito da cidade vizinha. A conversa para a troca ou para a venda do motor não foi das mais produtivas. O alcaide de Mundo Novo argumentava que por ser um bem público, devidamente cadastrado nos anais do município isto não seria possível, mas poderia haver uma permuta de serviços prestados com a relativa equivalência de valores. Assim foi feito. Eles efetuaram trabalhos de terraplanagem para obras na cidade e levou pra casa o motor novinho de um TD-9 Internacional. Fariam a troca no seu velho trator, agora constipado, preguiçoso, de asa quebrada que se recusava terminantemente a enfrentar a labuta. O trator foi levado pra oficina mecânica de Ivan Garcia, jovem destrinchador de problemas de cabos e fios dos mais competentes. Com a disposição vazando pelos poros, Ivan começou a trabalhar na troca do motor velho preguiçoso pelo motor novo com fama de retado. Alguns dias depois, a permuta mecânica chegou ao fim. Parafusos fixos, mangueiras de óleo no lugar, cabos elétricos engatados nos terminais, bateria com carga total, Ivan foi para o botão de arranque e deu partida. O motor fez hein hein hein e parou. Tentou de novo e o bicho fez a mesma coisa e silenciou. Diante do engasgo do teimoso, Ivan Garcia resolveu buscar ajuda na oficina vizinha de porta, de nome Nossa Senhora de Fátima, onde Flamarion Modesto, filho do grande Morrense Joel Modesto, dono do nome da mais movimentada avenida da cidade e o irmão Cid Modesto, ganhavam a vida sujando o Macacão com graxa. Flamarion e Cid estavam ocupados mas diante da aflição do colega resolveram encarar o danado do trator desaforado. Fizeram alguns testes e começaram a fazer perguntas a Ivan. Você apertou isto? Ivan dizia apertei. Você botou o fio naquilo? Botei, dizia Ivan. Você conectou o cabo da bobina? Conectei, afirmava Ivan. Então, ele vai pegar agora. Fizeram os últimos ajustes, Ivan subiu no assento e pregou fogo no botão de arranque. O motor fez de novo hein hein hein e o silêncio dessa vez foi pesado demais pra suportar. Os três se olharam e resolveram checar todo o trabalho pra ver onde estava o defeito. Horas depois, cansados de tantos hein hein hein, resolveram chamar o chefe dos mecânicos do DERBA, o grande Detinho, especialista em tratores malcriados e preguiçosos. Ele com certeza faria o danado bufar monóxido de carbono pela descarga. Detinho chegou, arrudiou,  passou a mão, checou o cabeamento elétrico, cuspiu de lado, fez conta nos dedos, trabalhou por horas e depois de muitos hein hein hein desistiu. Tava tudo certo mas o maldito motor não queria pegar. Ailton português começou a desesperar. Precisava trabalhar pra pagar as contas. Afinal o embroglio já durava dias. Já tava passando das contas. Estava matutando o que fazer quando viu passando do outro lado da rua Neco Ferreira, curador de almas, senhor dos ramos milagrosos, que tirava quebranto, erisipela, espinhela caída, inchaços no dente Quêro, barriga inchada e outros perrengues que as vezes aparecem na gente. Deu um grito chamando o moço e ele atravessou a rua e veio ver o motivo do chamamento. O portuga explicou que queria que ele passasse os ramos no dito cujo, só pra tirar uma cisma que passou pelo seu juízo. Só podia ser coisa do além. O curador retrucou: Seu Ailton, isso daí pra mim é um monte de ferro. Como é que eu vou passar os ramos num monte de ferro? Sim moço eu sei, dizia Ailton, mas faz isso pra mim que eu lhe pago. É só pra tirar uma cisma. Enquanto ouviam a proposta do benzimento, a troupe de mecânicos balançavam a cabeça em sinal de desaprovação. Onde é que já se viu rezar um trator? Além do mais era uma desfeita disfarçada, uma falta de respeito ao profissionalismo do grupo. E aí o velho Neco depois de algum tempo acabou cedendo e se preparou pra cumprir a missão. Primeiro foi no canto da rua e recolheu uns raminhos de mato. Tirou o chapéu de couro já surrado pelo tempo, fez o sinal da cruz, tossiu, pigarreou e virando pra Ailton perguntou: Como é o nome dele? Disse isso apontando o trator.

É TD-9 Internacional respondeu o portuga já se sentindo um pouquinho mais animado. E aí a sessão começou.O curador iniciou uma ladainha em voz baixa, passando os raminhos em boa parte do motor, emitia sons guturais e incompreensíveis, gemia baixinho e sapeca os raminhos que em pouco tempo começaram a murchar e despencar nas mãos do velho curador. Ele jogou fora, correu pro mato de novo, pegou outros raminhos e virou pro portuga e perguntou novamente: Como é o nome dele? TD-9 Internacional respondeu Ailton.E a sessão continuou. Depois de mais uma ladainha e gotas de suor na testa o velho Neco deu por terminado o seu trabalho.O clima era tenso. A expectativa tava estampada nos rostos de todos eles. Depois de segundos de tensão Ailton mandou o irmão Guilherme subir no assento do danado e pregar fogo no botão de arranque. Assim que o botão foi acionado, o motor deu um solavanco como se tivesse sido catapultado por uma bomba. Um tufo de fumaça preta saiu pelo cano da descarga e uma zuada parecendo trovão de chuva explodiu nos ouvidos de todo mundo, agora espantados, como se tivessem visto alma de outro mundo. Guilherme pisou o acelerador por duas vezes e deixou o motor em descanso, trabalhando em ponto morto, contando os giros dos pistons, como se tivesse saído da fábrica. Ninguém dizia nada, ninguém sabia o que dizer. E melhor não dizer nada quando uma coisa transcende os limites da compreensão humana. O velho Neco foi embora, os mecânicos foram embora e o português ficou a meditar o que diabos tinha acontecido. Pensou, pensou até que desistiu. Melhor cuidar das coisas, amanhã cedo tenho trabalho pra fazer, pensou ele com seus botões. Retirou da ignição a chave do trator e botou no bolso.Ia passar na padaria pra comprar o pão, e contar a novidade pra lourinha de olhos verdes que tinha em casa.

 

Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.

2 thoughts on “Carlos Karoá: ‘O Trator Teimoso’

  1. Este Carlos Karoa é fenomenal..Fiz aqui um comparative also causos do saudoso Jorge Homero

  2. Diga pra mim, Carlos, esse Velho Neco ainda opera por aí? Tô com um palio aqui precisando dos serviços dele!…
    Abraços!

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