O SUMIÇO DO MENINO
Parte 1.
Agnóstico que sou, acredito em pouca coisa que não seja possível se aplicar corretamente os substantivos femininos lógica e possibilidade.
Isto hoje que já sou um bode velho, calejado, experiente, sabedor que Papai Noel era meu velho pai João Karoá.
Mas, naquele tempo de menino, onde eu acreditava que quando chovia da porta lá de casa até a serra do Milagre e eu pensava que tava chovendo no mundo todo, era fácil acreditar que durante a semana santa por exemplo, a gente podia fazer um monte de travessuras que o pai não batia.
Se batesse na gente era como se estivesse batendo em Jesus Cristo. E foi pensando assim que me aconteceu um fato curioso, quando na cacunda tinha eu apenas nove ou dez anos de vida.
No final dos anos 1950, muita coisa, desde o amanhecer até chegar a noite, podia facilmente mudar de comportamento, nos dias sagrados da semana Santa. Não se podia comer carne vermelha, não se podia bater pregos, não se ligava rádio ou radiola, não se cantava música de carnaval, até bufar na vista de gente era um pecado dos mais graves.
Sempre fui irrequieto, curioso e aventureiro. Certo dia, desses que amanhece bonito e radiante, que dá vontade de sair jogando cabriola, numa manhã de terça feira de uma semana santa, assim que papei o glorioso café da manhã, com o santificado cuscuz de cada dia, fiz o que fazia sempre, ir para a rua a procura de algum menino desocupado igual a mim, pra brincar de alguma coisa.
Ao sair na rua, reparei que na porta de casa de seu Bidão, tinha um caminhão parado com algumas pessoas em volta, comprando peixe para o preparo nos dias sagrados da semana Santa, já que os bifes de carne vermelha estavam terminantemente proibidos naquele período de quaresma.
Isto por volta das nove horas da manhã aproximadamente.
Eu como não queria nada e ao mesmo tempo querendo saber de tudo, botei um pé no pneu e pulei pra cima do caminhão e fiquei ali a olhar o homem despachar a freguesia, dizendo ele que era bacalhau da Noruega, mas que de Noruega não tinha absolutamente nada.
Os peixes secos, salgados e com os olhos esbugalhados olhando para mim, não tinha com os primos escandinavos, nenhum parentesco. Eram surubins, dourados, pacumãs salgados, pescados nas barrancas do rio São Francisco, entre as cidades de Barra e Xique-Xique.
O bacalhau português também não chegava com facilidade na mesa dos barramendenses.
Eu continuava por ali, empoleirado na carroceria do caminhão, vendo o movimento dos fregueses, enquanto o sol continuava a subir lá pras bandas do açude.
Estava assim, na espera de aparecer algum parceiro pra encetar alguma brincadeira, quando um outro Caminhão emparelhou do meu lado e parou. A pessoa que estava dirigindo começou a conversar com alguém da boléia do outro caminhão e eu olhei para dentro da carroceria e vi o meu amigo Carlos de Aurélio sentadinho sobre uma lona, encostada no gigante do carro que chegará há pouco.
Aí perguntei:
Tá fazendo o que aí Carlos?
Ele respondeu: nada
Eu insisti: Tá indo pra onde?
Ele respondeu: A gente tá indo fazer carga.
Ato continuo, passei a perna por cima da carroceria e fiquei abaixado sentado junto dele.
A conversa entre os dois homens das boleias demorou pouco e logo logo o caminhão seguiu viagem, levando agora na carroceria o Carlos do velho Aurélio, feinho pra dedéu e o Carlos de João Karoá, bonitinho pra chuchu.
Gente, naquele tempo, a expressão portuguesa “fazer carga” era sair pelos povoados comprando sacas de feijão, milho, mamona, completar a quantidade necessária para a carga completa do caminhão, descer para Feira de Santana ou Salvador e voltar carregado de querosene, açúcar, biscoitos e mais o que se consumia nos lares da nossa província.
O segundo caminhão pertencia aos irmãos Maninho e Tofin. Assim que o carro arrastou, eu fiquei aterrorizado sem saber o que fazer. Os familiares do meu xará, Carlos de Aurélio, já deveriam estar sabendo que ele estava com os irmãos caminhoneiros, porque ele estava tranquilo demais, mas meu pai não sabia de nada e comecei a ficar com a angústia vazando pelos poros.
O caminhão atravessou a praça Nestor Coelho, naquela época desprovida de qualquer urbanização e não parou mais. Na rua Juracy Magalhães eu até pensei em pular do carro, mas fiquei com medo de quebrar uma perna e desisti.
Só olhava pra Carlos com os olhos arregalados de medo, mas o pestinha continuava tranquilo como se nada tivesse acontecendo, enquanto eu já começava a pensar na surra que ia levar, mesmo sendo na semana santa. Lá em casa, essa tradição com meu pai, não ia funcionar não.
E o caminhão continuava correndo, desembestado como se tivesse um motorzinho de popa e eu agoniado, com a cabeça quente como se tivesse um forno de padaria aceso, lá dentro dos miolos.
Já tinha passado do cemitério e logo logo pegaria a estrada vicinal a direita, que descambava pros lados do Barro Alto, que naquele tempo não tinha sido elevado à categoria de cidade e algumas pessoas insistiam em chamar de “”As Bruacas”. Se chamar hoje apanha.
O motorista do carro era Tofin. Seguia em velocidade regular, batendo a carroceria por estar vazio e as irregularidades da estrada. A poeira, que apagava quase tudo em nossa volta, já tinha deixado eu e meu xará com os cabelos amarelos como farinha de cuscuz.
Depois de meia hora de chão, Maninho resolveu olhar pra trás por um vidrinho que tinha na boléia, pra ver como estava o garoto Carlos de Aurélio e tomou um susto quando viu também, Carlos de João Karoá.
Vi que ele fez um movimento, levando as mãos à cabeça e mandou parar o carro. Assim que saltou, me fez a pergunta de forma ríspida, mas sem brutalidade: O que é que tu tá fazendo aí Carlos?
Eu expliquei que tinha passado de um caminhão para o outro lá na praça, ele arrancou com o carro e eu fiquei com medo de pular e quebrar a perna.
Aí ele perguntou por que não gritou a gente pedindo pra parar?
Eu disse que fiquei com medo e tava sem saber o que fazer.
Maninho coçou a cabeça e me avisou:
Olha, a gente vai fazer carga e agora não dá mais pra voltar. Só de noite. Mas, não se preocupe viu. Eu levo você lá na a sua casa e João vai entender.
Eu apenas ouvi e fiquei calado. Ele meneou a cabeça, como se não tivesse jeito a dar, entrou no carro e lá fomos nós visitar as terras das Bruacas, hoje doutor Barro Alto.
Paramos na porta de casa da mãe deles.
Almoçamos, e no início da tarde saímos pros lados da Formosa, Mandacaru, Lagoa Funda e mais alguns povoados que guardavam os sacos de grãos, pra fazer carga e descer pra capital.
Era eles trabalhando e eu rezando pra não apanhar quando chegasse em casa.
Vamos deixar agora os irmãos Maninho e Tofin pesando as sacas de grãos, para voltar a Barra do Mendes, horas depois de sairmos de lá.
Quando os ponteiros do relógio se juntaram no número 12, meu pai fechou a loja lá na praça nova e veio pro almoço na rua de baixo, na nossa casa que hoje é a casa de Nái do velho Aurélio.
Estranhou já está passando do meio dia e eu não estar arrodeando a mesa na hora do pirão nosso que Deus mandava.
Inquiriu à sua esposa, minha madrasta, por onde eu andava e ela respondeu que eu ainda não tinha aparecido até aquela hora.
Ai velho João coçou a cabeça e resolveu ir na casa vizinha, a pensão da minha tia Zuzu, hoje a casa de Lilasio do velho Salú, perguntou por mim mas a resposta foi a mesma: Eu não tinha aparecido por lá durante toda manhã.
Aí meu pai começou a ficar preocupado. Tinha alguma coisa errada nesta história. Faltava um parafuso pra fechar a tampa.
Subiu o beco do velho sobrado de Deraldo Forte, dobrou a direita e foi pra casa de tia Filhinha, imaginou que eu pudesse estar brincando com Zinho, meu primo, mas a resposta foi a mesma: Não tá aqui não. Ele hoje não apareceu por aqui.
Aí meu pai endoidou. Tinha uma coisa errada com certeza. Começou a perguntar nas casas dos vizinhos, mas ninguém sabia do meu paradeiro. Ninguém me viu, ninguém sabia de mim. Tinha virado fumaça.
Gente, Barra do Mendes nos anos 50, mesmo no final da década, era uma cidadezinha provinciana, emancipada há dois anos passados, tinha uma população que beirava a dois mil viventes.
Logo logo a notícia se espalhou da praça nova ao final da rua Juracy Magalhães. Curta e grossa: Carlos de João Karoá tinha sumido.
Conclusão desta história no próximo episódio.
Carlos Karoá, amante de música e cinema, também tem paixão pelo universo das letras. Em 1970, deixou Morro do Chapéu com destino a Salvador, como fazia todo jovem interiorano daquela época. Hoje aposentado, retorna à nossa cidade em busca de uma vida mais tranquila. Gosta de escrever crônicas e pequenos contos, sejam eles verdadeiros ou não.